“Amadeus”: Miloš Forman em forma
É raro que um filme do porte de Amadeus (1984) envelheça com tamanha graça. Em tempos de Inteligência Artificial que compõe sinfonias e algoritmos que sugerem playlists “à la Mozart”, rever a obra-prima de Miloš Forman é como abrir uma garrafa de vinho barroco: o sabor é denso, contrastante e embriagador. O longa, baseado na peça de Peter Shaffer — que também assina o roteiro — continua sendo uma aula de cinema, teatro e música, com ares de tragédia grega disfarçada de ópera buffa vienense.
Muitos lembram de Amadeus como um filme “sobre Mozart”, mas isso seria como dizer que Cidadão Kane é um filme “sobre jornais”. A verdade é que o filme é tanto sobre o gênio quanto sobre a mediocridade ressentida, encarnada de maneira magistral por Antonio Salieri, interpretado com nuances demoníaco-santas por F. Murray Abraham. O narrador demente e confessor do crime artístico — o assassinato simbólico do talento — transforma o filme em uma autópsia espiritual, não da genialidade, mas do homem comum diante do sublime.
“O Salieri de Abraham não é apenas um vilão, é um espelho. Ele reza, jejua, busca agradar a Deus, mas o Senhor, cruel e impiedoso, joga sua inspiração divina sobre o ombro de um moleque indecente que escreve sinfonias como quem escreve cartas de amor embriagadas.”
A performance de Tom Hulce como Mozart ainda hoje provoca reações divididas: seu riso histérico e sua postura quase caricatural incomodam alguns e encantam outros. Mas é justamente essa irreverência adolescente que tensiona o conflito com a sisudez clerical de Salieri, oferecendo ao público uma espécie de retrato de Dorian Gray invertido — onde a beleza está na música e a feiura, na alma de quem a escuta com inveja. Forman, vindo do contexto da Tchecoslováquia comunista e depois da Nova Hollywood, sabia como poucos filmar a tensão entre o artista e o sistema.
Visualmente, Amadeus permanece suntuoso. Os figurinos de Theodor Pištěk, o design de produção de Patrizia von Brandenstein e a fotografia de Miroslav Ondříček criam uma Viena que é mais sonho do que cidade. A trilha sonora, com trechos cuidadosamente restaurados das obras de Mozart, não só embala a narrativa como a estrutura. Cada movimento da sinfonia do roteiro é pautado pela música — ela não ilustra a trama; ela é a trama.
Salieri: o patrono da mediocridade ressentida
O impacto filosófico de Amadeus se mostra ainda mais relevante hoje, quando plataformas como o YouTube, o Spotify e o TikTok transformaram todos nós em mini Salieris: curadores, comentaristas e julgadores da genialidade alheia, muitas vezes com o mesmo rancor. Quem nunca pensou “por que ele e não eu?” que atire a primeira partitura. O filme não trata apenas de música clássica, mas da vaidade, da fé, do fracasso — e, sobretudo, da consciência de não ser especial.
O Salieri de Abraham não é apenas um vilão, é um espelho. Ele reza, jejua, busca agradar a Deus, mas o Senhor, cruel e impiedoso, joga sua inspiração divina sobre o ombro de um moleque indecente que escreve sinfonias como quem escreve cartas de amor embriagadas. Nesse embate, Amadeus nos oferece uma visão teológica em tom de farsa: Deus, como artista supremo, despreza os bajuladores técnicos e se apaixona pelos ousados, pelos irreverentes, pelos insolentes com talento.
Forman — que já havia explorado o autoritarismo e a loucura em Um Estranho no Ninho — usa a música de Mozart como forma de subversão. É uma arte que não pede licença, que invade. Ao contrário de outros filmes biográficos, Amadeus não quer documentar fatos; quer iluminar verdades humanas. Mozart não precisa ser historicamente exato porque o que está em jogo não é a precisão, mas a potência simbólica.
Quarenta e um anos depois de sua estreia, o filme se mantém atual porque nos lembra que o mundo nunca soube lidar bem com o gênio. Nem em 1790, nem em 1984, nem em 2025. E talvez nunca saberá.

Se Forman está “em forma”, como diz o título desta resenha, é porque Amadeus é seu exercício mais completo — onde humor, tragédia, crítica social e filosofia se encontram na partitura perfeita. A forma é clássica, mas o conteúdo é profundamente contemporâneo: vivemos cercados de Salieris, sedentos por reconhecimento, e de alguns poucos Mozarts, que seguem compondo no caos. E isso, caro leitor, é puro espetáculo.
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