Papuda: a nova “casa” de Bolsonaro?
Poucas instituições sintetizam tão bem o imaginário brasileiro sobre crime, castigo e poder quanto a Papuda. O Complexo Penitenciário, instalado no coração do Distrito Federal, é um monumento paradoxal: uma cidade murada para os invisíveis do sistema penal e, simultaneamente, vitrine pública para os poderosos que caem em desgraça. Foi ali que passaram figuras centrais do mensalão e do petrolão, e é dali que surgem as manchetes mais incômodas para Brasília. A Papuda é, por assim dizer, a Disneylândia macabra da moralidade política nacional – onde o discurso de campanha encontra o cimento cru da cela superlotada.
O destino do ex-presidente Jair Bolsonaro – condenado pelo Supremo Tribunal Federal a 27 anos de prisão – entra nesse roteiro como um capítulo de novela de realismo sombrio. Até outro dia, Bolsonaro discursava contra as “elites” e falava em “presídios de luxo” para bandidos perigosos. Hoje, vê-se na iminência de se tornar mais um número na estatística de 5.300 vagas disputadas por quase 8.000 detentos. O símbolo do poder máximo no Planalto pode muito bem terminar seus dias de liberdade no mesmo corredor onde outrora circulavam operadores do mensalão. Não há metáfora mais eloquente para um país acostumado a ciclos de glória e queda.
“E a Papuda, convém lembrar, não é cenário de série americana com celas individuais e carpete felpudo. É uma colcha de retalhos históricos: antigas fazendas desapropriadas, olarias transformadas em muros, alas sem defensores públicos, rebeliões sangrentas nos anos 2000 e tentativas de fuga recentes com buracos escondidos por colchões. Uma penitenciária com blocos ociosos e celas superlotadas, pássaros ocupando espaços que deveriam ser de detentos. Ali, não existe “bancada evangélica”, “gabinete do ódio” ou “motociata” que interceda: só grades, revista íntima e banho de sol.”
E a Papuda, convém lembrar, não é cenário de série americana com celas individuais e carpete felpudo. É uma colcha de retalhos históricos: antigas fazendas desapropriadas, olarias transformadas em muros, alas sem defensores públicos, rebeliões sangrentas nos anos 2000 e tentativas de fuga recentes com buracos escondidos por colchões. Uma penitenciária com blocos ociosos e celas superlotadas, pássaros ocupando espaços que deveriam ser de detentos. Ali, não existe “bancada evangélica”, “gabinete do ódio” ou “motociata” que interceda: só grades, revista íntima e banho de sol.
O mais intrigante é o paralelo biográfico. Bolsonaro fez carreira se apresentando como o arauto da lei e da ordem, ex-capitão do Exército, parlamentar folclórico e, finalmente, presidente. Sua narrativa pessoal é de alguém que lutou contra o “sistema” – seja lá o que isso signifique. A Papuda também tem sua narrativa: nasceu como fazenda, virou símbolo da punição republicana, serviu de palco para rebeliões que desafiaram o Estado. Ambos carregam cicatrizes – Bolsonaro, da facada em 2018; a Papuda, de dezenas de mortos em motins.
Entre o mito e o colchão furado
Se Bolsonaro realmente for para a Papuda, não estará apenas mudando de CEP; estará atravessando um portal simbólico. Ao passar pelo portão metálico do Centro de Detenção Provisória, deixaria de ser “o mito” para se tornar “o interno”. Esse trânsito do poder para a reclusão não é inédito – basta lembrar José Dirceu, Marcos Valério, Delúbio Soares. Mas com um ex-presidente a coisa muda de escala: é a história do Brasil recente sendo escrita com ferro e concreto.
A defesa já acena com pedido de prisão domiciliar. Alegam problemas de saúde, sequelas da facada, crises de soluço e lesões de pele. A imagem do “líder do povo” fragilizado humaniza e vitimiza – mas também funciona como uma cartada jurídica para evitar a cela coletiva. O ministro Alexandre de Moraes, no entanto, parece inclinado a não ceder. Entre pressões internas, ameaças veladas e sanções externas, cresce o rumor de que Bolsonaro vá mesmo para o regime fechado. Seria uma decisão não apenas legal, mas política – um recado para aliados e opositores.
Há ainda o componente histórico da Papuda como “escola” do sistema penal brasileiro. A CPI de 2008 apontou falhas gritantes: defensoria pública insuficiente, presos sem progressão por falta de advogado, áreas ociosas cercadas por superlotação. Em pleno 2025, pouco mudou. É para lá, esse microcosmo do colapso carcerário nacional, que pode ser enviado o ex-presidente. A ironia é irresistível: Bolsonaro, que tanto evocou o “bandido bom é bandido morto”, agora depende da boa vontade do Judiciário para não ser tratado como “mais um”.
No pano de fundo, o Brasil assiste hipnotizado. Uns comemoram como justiça tardia; outros denunciam perseguição política. O Complexo Penitenciário, alheio a essa novela, segue seu ritmo próprio: revista, contagem, banho de sol, visitas e intermináveis processos judiciais. Bolsonaro pode até ganhar uma cela mais isolada, mas não escapará da rotina da Papuda. O portão de ferro não distingue entre Zé Dirceu ou Jair Bolsonaro; todos viram internos, todos ganham matrícula e todos enfrentam as mesmas regras básicas – com ou sem mito.
Por fim, há o elemento cultural. A Papuda tornou-se uma personagem do imaginário brasileiro, quase como um “personagem” de novela. E Bolsonaro, goste-se ou não, é um protagonista que polarizou a sociedade. Se seus caminhos se cruzarem, o Brasil terá uma imagem que sintetiza uma era: o ex-presidente no presídio que é, ao mesmo tempo, palco de poder e ruína. Não será apenas um homem atrás das grades; será um país inteiro olhando-se no espelho de suas contradições.

Assim, a pergunta do título não é mero exercício de provocação jornalística. É um espelho do momento histórico. “Papuda: a nova “casa” de Bolsonaro?” talvez seja apenas uma hipótese hoje, mas funciona como síntese de um Brasil onde mito e realidade se confundem, onde o poder é efêmero e onde as fazendas viram presídios – e os presídios, metáforas nacionais. A Papuda é mais do que um endereço; é um destino simbólico. E Bolsonaro, ao que tudo indica, está na rota desse destino.
Última atualização da matéria foi há 2 meses
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.




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