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Assaltaram a Gramática: metáforas e rupturas

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Era 1984. Enquanto o Brasil ainda se debatia entre o fim da ditadura e a ressaca cultural dos anos 70, Lulu Santos e Waly Salomão decidiram cometer um crime de lesa-linguagem. Não um crime qualquer, desses que rendem nota no rodapé de jornal, mas um assalto cinematográfico, com direito a refém (a gramática), vítima de sequestro (a fonética) e até homicídio qualificado (a lógica, que desmaiou ali na esquina). Tudo embalado pelo som vigoroso dos Paralamas do Sucesso, no álbum O Passo do Lui. O resultado foi uma canção que, ao mesmo tempo, debocha das regras e constrói um novo edifício sobre seus escombros — uma obra que parece ter sido escrita no calor de uma pelada de várzea, com as palavras chutadas como bolas e as rimas driblando o senso comum.

O que Lulu e Waly fizeram foi mais que música: foi performance linguística. Em versos que trocam de registro como quem troca de camisa no intervalo, a letra é um laboratório de trocadilhos, metáforas e rupturas. Ali, o poeta não é um sábio recluso — é “a pimenta do planeta”, um elemento incômodo e excitante, que queima a língua e acorda a mente. Ao falar de “botar poesia na bagunça do dia a dia”, a canção assume o caos como método. Não se trata de vandalismo gratuito, mas de desmontar para reconstruir, de provar que a linguagem, quando solta das algemas da gramática normativa, dança mais, corre mais, e até marca gol de bicicleta (ergométrica).

“A música ainda é um recado: a sofisticação da linguagem não está em obedecer todas as regras, mas em saber quebrá-las com estilo e propósito.”

O sabor de nonsense é proposital. No texto, não há espaço para o “bom comportamento” das palavras. Pelo contrário: o poeta é jogador de várzea, juiz de si, cronista de boteco, comentarista de futebol e agitador de auditório — tudo na mesma quadra. A lógica que se assassina não é a da coerência interna, mas a lógica burocrática que congela a língua num museu. Waly, com seu histórico de guerrilheiro sem armas e agitador cultural, sempre entendeu que poesia é também desobediência civil. Lulu, por sua vez, soube transformar essa rebeldia em pop radiofônico, acessível e dançante.

Há também um flerte declarado com a oralidade popular, com o improviso e o jogo de cena. Não à toa, a canção cita plantas (bertalha, pimentão, agrião, boldo) como se recitasse uma receita de quintal, e insere expressões de arquibancada sem pedir licença. É um texto que parece ser cantado e gritado ao mesmo tempo, como se fosse feito para ecoar na rua. Isso, em 1984, era um gesto político: a rua estava voltando a ser espaço de liberdade.

Entre o futebol e o surrealismo

O jogo de futebol, onipresente na letra, não é só referência cultural. É metáfora do improviso e da imprevisibilidade. Um gol de letra vira arte; um frango, falha poética; um carrinho, ruptura métrica. Assim como no futebol brasileiro, na canção o talento improvisado supera a tática engessada. O “intervalo” vira espaço de invenção, e até a matemática se converte em piada. Waly e Lulu sabiam que o Brasil é mais Pelé do que Descartes, mais drible do que régua — e celebraram isso.

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O surrealismo, por sua vez, aparece nas imagens absurdas que não se explicam, apenas se aceitam: um avião em chamas, orifícios preenchidos sem esforço, um poeta coroado de hortaliças. É a estética do exagero, do “quanto mais improvável, melhor”. A sintaxe se dobra, a semântica se distorce, e ainda assim o conjunto não se desmancha. É justamente essa desordem ordenada que mantém a música viva quarenta anos depois.

O título “Assaltaram a Gramática” não é só um enfeite provocador. É um manifesto. Ele sugere que a gramática é uma espécie de banco central da linguagem, guardando suas riquezas sob vigilância severa. Ao assaltá-la, o poeta redistribui o tesouro, entregando as joias sintáticas e as pérolas semânticas à população — que, aliás, não só aceita como dança com elas.

A música ainda é um recado: a sofisticação da linguagem não está em obedecer todas as regras, mas em saber quebrá-las com estilo e propósito. Hoje, num tempo em que algoritmos policiam textos e filtros caçam “erros” como caçadores de recompensas, a letra soa como uma convocação para que a língua continue viva, desobediente e um pouco perigosa.

No fim das contas, “Assaltaram a Gramática” é um lembrete de que a poesia pode — e talvez deva — entrar em campo sem pedir autorização à gramática normativa. Que a lógica, às vezes, precisa ser assassinada para que outras formas de pensar possam nascer. E que o verdadeiro poeta não é o que preserva a ordem, mas o que tempera o mundo com pimenta-malagueta, para que ninguém se acomode no gosto insosso da mesmice.

A canção foi embalada no álbum O Passo do Lui do Paralamas de 1984 (Foto: Google)
A canção foi embalada no álbum O Passo do Lui dos Paralamas de 1984 (Foto: Google)

Se a língua é um jogo, essa canção prova que vale a pena arriscar um gol de bicicleta — mesmo que seja ergométrica. Afinal, a beleza do jogo, assim como da poesia, está em desafiar o previsível e marcar pontos no campo do impossível.


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