Bhagavad Gita: emocionou Oppenheimer
Poucas obras escritas há mais de dois mil anos mantêm a capacidade de atravessar civilizações, continentes e disciplinas intelectuais como o Bhagavad Gita. O texto — parte central do épico Mahabharata, com seus diálogos entre Krishna e Arjuna — não apenas resiste ao tempo como permanece ativo na política, na cultura pop e até na ciência. Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica, era um leitor devoto do livro. Sua famosa frase ao ver o primeiro teste nuclear (“Agora eu me tornei a Morte, a destruidora de mundos”) foi retirada dali. Mas, apesar da mitificação recorrente da obra no Ocidente, é preciso dizer: o Gita é mais complexo e desconcertante do que se vende por aí.
Embora seja fácil romantizar o episódio de Oppenheimer — especialmente com o filme homônimo de 2023 ainda recente na memória de muitos —, o contexto original do Bhagavad Gita está longe de ser um compêndio de paz ou uma ode a não violência. Pelo contrário: a conversa central da obra acontece às vésperas de uma guerra fratricida. Arjuna, o guerreiro, hesita diante da batalha iminente contra seus próprios parentes, mestres e amigos. É então que Krishna, disfarçado de cocheiro, o exorta a lutar. O argumento não é moralista no sentido convencional, mas filosófico e metafísico: Arjuna deve cumprir seu dharma (dever) sem apego aos frutos da ação.
“O Gita não ensina a ser “feliz”, mas a agir mesmo diante do absurdo. Em certo sentido, a angústia do físico ao testemunhar o poder da bomba atômica é o reflexo perfeito da lição amarga que Krishna oferece a Arjuna.”
Ou seja, por trás da ideia de autoconhecimento, desapego e elevação espiritual — conceitos que conquistaram hippies, físicos e empresários do Vale do Silício nas décadas seguintes —, o Bhagavad Gita é, sobretudo, um tratado sobre a aceitação da violência necessária. Isso cria um dilema ainda não completamente resolvido entre os estudiosos: até onde o Gita oferece uma filosofia de transcendência e até onde justifica ações cruéis em nome de um suposto dever superior?
Essa ambiguidade fez do Bhagavad Gita uma arma retórica poderosa ao longo dos séculos. Líderes indianos como Gandhi liam o livro sob uma ótica espiritualista e pacifista. Já outros, como o revolucionário Subhas Chandra Bose, enxergavam ali a legitimação da luta armada. Até no Brasil, a obra se tornou item de cabeceira de círculos esotéricos e de autoajuda, esvaziada de seu peso dramático e político. Em tempos de polarização e guerras reais no tabuleiro geopolítico mundial, o Gita permanece sendo citado em discursos e palestras, às vezes de forma quase banalizada.
Entre o misticismo e a geopolítica
Não se pode negar o impacto cultural. Autores como Aldous Huxley e Carl Jung beberam de suas ideias. Físicos quânticos como Schrödinger também o estudaram. Até Steve Jobs mantinha uma cópia do livro sempre consigo. O Gita acabou, assim, associado a uma espécie de sabedoria universal, capaz de unir espiritualidade oriental e racionalidade ocidental.

Mas essa universalização vem com um preço: dilui o contexto trágico e contraditório da obra. O que originalmente era um dilema sobre guerra, dever e consciência, virou uma moldura para mensagens positivas em redes sociais. Essa leitura rasa ignora justamente o aspecto que mais fascinava Oppenheimer: a tensão brutal entre ação e ética. O Gita não ensina a ser “feliz”, mas a agir mesmo diante do absurdo. Em certo sentido, a angústia do físico ao testemunhar o poder da bomba atômica é o reflexo perfeito da lição amarga que Krishna oferece a Arjuna.
Quando vivemos a superexposição de textos clássicos em vídeos curtos e reels, é essencial retomar a leitura cuidadosa do Bhagavad Gita. Ele não é um livro de autoajuda. Não oferece soluções simples. Não é um convite à paz, mas ao enfrentamento da vida com a dureza necessária. Talvez seja por isso que tenha emocionado Oppenheimer: ele viu ali não consolo, mas o abismo.
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