Decadência: Edir Macedo na Globo?
Em tempos de revisionismo e reedições, tudo que foi pedra pode virar pão, e o que ontem foi guerra, hoje talvez seja só um bom negócio. Não deixa de causar certo espanto, porém, o ressurgimento da minissérie Decadência no Globoplay, quase trinta anos depois de sua exibição original, justamente num momento em que os evangélicos se tornaram um dos pilares do poder político e midiático no Brasil. A ironia não passa despercebida: uma das obras mais ácidas já produzidas contra o neopentecostalismo brasileiro — com endereço quase certo — agora ocupa lugar de destaque no catálogo da Globo, empresa que, em sua fase de “reconciliação com o Brasil”, parece ter redescoberto o prazer de cutucar velhas feridas.
Escrita por Dias Gomes e exibida em 1995, Decadência acompanha a derrocada da família Tavares Branco, símbolo da elite conservadora do Rio de Janeiro, enquanto ascende, em paralelo, o ex-motorista Mariel, que funda uma igreja neopentecostal e enriquece com os dízimos dos fiéis. O protagonista, vivido por Edson Celulari, caminha com passos largos na fronteira entre a ficção e o real: seus trejeitos, falas e trajetória lembram — demasiadamente — o bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. Tão lembram, aliás, que Macedo processou a Globo e o autor por danos morais e materiais, alegando que a minissérie seria uma caricatura difamatória da sua figura pública. Em bom português: ele “enfiou a carapuça”, como disse Dias Gomes.
“A escolha de reprisar Decadência sem cortes, com todas as suas cenas polêmicas intactas, é mais que um gesto artístico: é um ato político. Numa era de suscetibilidades exacerbadas, em que qualquer crítica à religião corre o risco de ser tachada de intolerância, a Globo remexe num vespeiro com gosto.”
A exibição original de Decadência se deu num momento de tensão aberta entre a emissora e a igreja de Macedo. Pouco antes da estreia, o Jornal Nacional exibira uma sequência de reportagens investigativas sobre a Universal, com denúncias de lavagem de dinheiro, curas falsas e manipulação de fiéis. A minissérie veio como uma estocada artística na jugular teológica da instituição, coroada com uma cena hoje antológica: um sutiã jogado sobre a Bíblia Sagrada, em pleno quarto do líder espiritual.
Um gesto simbólico? Uma blasfêmia? Uma crítica social? Para o público da época, a mensagem foi mais do que clara — e absolutamente incendiária.
Quando o altar vira palco: ficção ou vingança?
O retorno de Decadência em 2024, pelo Projeto Resgate do Globoplay, não é um simples gesto de recuperação da memória audiovisual brasileira. É também um recado enviesado, uma piscadela sarcástica. A Globo, que já cortejou Edir Macedo em entrevistas protocolares, agora devolve aos holofotes a obra que mais o irritou. Talvez a emissora esteja testando os limites do ecumenismo midiático. Ou talvez esteja apenas respondendo à escalada das igrejas rivais — como a Record, que ainda pertence ao bispo e tenta competir com a Globo em audiência e influência (mesmo não conseguindo até o presente momento).
A minissérie, vista hoje, ganha contornos quase premonitórios. Mostra o colapso de uma elite tradicional, que perde sua influência para uma nova burguesia evangélica, marcada por um pragmatismo brutal, carismático e oportunista. Mariel, o protagonista, usa a fé como instrumento de poder, não exatamente diferente do que se vê em certos púlpitos televisivos nos dias de hoje. E se Carla, a personagem idealista e petista vivida por Adriana Esteves, representa uma esquerda culturalmente dominante, mas cada vez mais impotente, Mariel encarna o avanço de uma nova ordem: moralista, rentável e, acima de tudo, imbatível na arte da comunicação em massa.
Mas o que Decadência realmente escancara é a plasticidade da religião quando transformada em espetáculo. Não se trata de um ataque gratuito à fé, mas de um alerta — com tintas carregadas, sim — sobre os perigos da fé transformada em mercado. A ascensão de Mariel é construída sobre uma sucessão de performances, manipulações e dogmas reembalados como produtos. A figura do pastor pop, milionário e midiático, que enriquece com a fragilidade emocional dos outros, tornou-se corriqueira no Brasil de hoje. O que antes parecia exagero dramático agora soa como documentário disfarçado de ficção.
A escolha de reprisar Decadência sem cortes, com todas as suas cenas polêmicas intactas, é mais que um gesto artístico: é um ato político. Numa era de suscetibilidades exacerbadas, em que qualquer crítica à religião corre o risco de ser tachada de intolerância, a Globo remexe num vespeiro com gosto. E faz isso ciente do risco, mas talvez também ciente de que o tempo passou e que, paradoxalmente, Edir Macedo — o ofendido de ontem — hoje reina sobre uma emissora concorrente. Como diria Shakespeare, “a tragédia de um homem é a comédia de outro”. Ou, neste caso, o streaming de um é a provocação do outro.
E então, o que pensar da exibição de Decadência no dias que se correm? Seria uma volta corajosa às origens críticas da emissora? Uma provocação involuntária? Ou apenas um bom conteúdo requentado para impulsionar assinaturas? A resposta, talvez, esteja em outro versículo: “a cada um segundo suas obras”. E, no caso da Globo e da Universal, essas obras continuam em cartaz, só que agora com mais plataformas e menos pudores.

De todo modo, não deixa de ser irônico — e até poético — que Edir Macedo, o maior símbolo do antagonismo religioso à emissora, agora esteja de volta à Globo. Ainda que apenas como personagem fictício, caricato, feroz — e eternamente em busca de redenção (por mais que a emissora do Jardim Botânico diga o contrário).
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