Guerra e Paz: uma obra russa monumental
Poucos livros ousaram ser tão extensos, tão densos, tão… russos. Publicado entre 1865 e 1869, Guerra e Paz, do conde Lev Tolstói, é aquele tipo de obra que muita gente compra, menos gente começa e pouquíssimos terminam. Afinal, são mais de mil páginas de batalhas napoleônicas, dramas familiares, reflexões filosóficas e personagens cujos nomes parecem trocadilhos alcoólicos: Pierre Bezúkhov, Andrei Bolkónski, Natália Rostova… E, no entanto, aqueles que atravessam essa muralha literária, descobrem algo incomum: um épico que não se contenta em ser apenas um romance, mas também um tratado histórico, uma crônica moral e, por vezes, um sermão disfarçado de narrativa.
Estamos em agosto de 2025, e Guerra e Paz ressurge, como sempre ressurge, a cada geração que decide encarar o desafio. E se hoje se lê menos Tolstói do que se deveria, a culpa talvez seja da rapidez digital e da síndrome do texto curto. Ler Tolstói exige tempo, paciência e um certo gosto por cebolas — camadas e camadas de sentido que só revelam sua pungência aos poucos. Ele escreve como quem não tem pressa porque, de fato, não tinha. E é isso que torna Guerra e Paz uma experiência tão singular num mundo que só corre.
“Tolstói não queria entreter; queria explicar o mundo. E, ironicamente, ao tentar abarcar tudo, ele escreveu uma obra que resiste à síntese.”
Na superfície, o livro narra a invasão napoleônica da Rússia e o impacto disso em cinco famílias da aristocracia. Mas isso é como dizer que a Ilíada é só sobre um cavalo de madeira. O que Guerra e Paz realmente investiga é a condição humana, a luta entre o desejo pessoal e o fluxo da História, o absurdo da guerra e a busca míope por glória.
Tolstói não poupa seus personagens, nem seus leitores. Todos estão sujeitos a mudanças súbitas de fortuna, epifanias existenciais e, claro, às violentas reviravoltas da política e da guerra.
A ficção como lente da História
Um dos grandes trunfos do romance é seu desdém pelas narrativas históricas simplistas. Tolstói desafia a ideia de que Napoleão era um gênio militar isolado, ou que Alexandre I era um monarca iluminado. Para ele, a História é movida por milhões de pequenas ações individuais, por acasos, medos, instintos, vaidades — o caos travestido de destino. Essa visão pulveriza o heroísmo tradicional e ridiculariza os manuais escolares. Em certo ponto, Tolstói chega a parar a narrativa para discutir historiografia com o leitor, como um professor impaciente num café filosófico. É incômodo, mas também genial.
A linguagem é outra montanha a escalar. Tolstói mescla o russo com trechos em francês, como era de praxe na elite russa do século XIX. Isso pode parecer pedante, mas cumpre uma função: mostrar o quanto aquela nobreza estava alienada de sua própria cultura. As novas traduções tentam resolver esse dilema, mas ainda hoje há quem fique zonzo tentando lembrar quem é quem em meio aos patronímicos e apelidos.
Quanto aos personagens, são de uma complexidade rara. Pierre Bezúkhov, herdeiro atrapalhado e filosófico, é um dos retratos mais honestos da eterna busca por sentido. Ele tropeça pela vida, ora se jogando na maçonaria, ora tentando matar Napoleão, ora se casando com uma mulher que claramente não o ama. E mesmo assim, seguimos com ele, porque Pierre somos todos nós quando erramos tentando acertar.
Já o príncipe Andrei Bolkónski representa o outro extremo: o estoico, o cínico, o desiludido. Sua trajetória é uma lenta erosão da esperança, até que, em um dos momentos mais líricos da literatura, ele contempla o céu estrelado numa maca de guerra e entende, enfim, sua insignificância cósmica. É de uma beleza amarga, que nenhuma rede social é capaz de oferecer.
Claro, Guerra e Paz tem seus excessos. As digressões filosóficas são longas como invernos siberianos. O epílogo é duplo, sendo que o segundo parece um ensaio universitário metido a Kant. E há momentos em que o leitor suplica por um editor mais severo — ou pelo menos por um mapa genealógico decente.
Mas tudo isso é parte do pacote. Tolstói não queria entreter; queria explicar o mundo. E, ironicamente, ao tentar abarcar tudo, ele escreveu uma obra que resiste à síntese. Guerra e Paz não é uma leitura fácil, nem pretende ser. É um rito de passagem intelectual, uma prova de resistência emocional, um Everest da ficção que não admite escaladas apressadas.
Talvez seja difícil convencer alguém a trocar um vídeo de 60 segundos por um calhamaço de mil páginas. Mas quem ousa, quem insiste, quem se permite atravessar esse deserto de palavras, encontrará oásis de lucidez, personagens de carne e osso, e um espelho desconcertante da própria condição humana.

Tolstói, afinal, não escreveu apenas sobre a Rússia do século XIX. Escreveu sobre todos nós, tentando entender a guerra lá fora e a paz — quase impossível — dentro de si.
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