Hara-Kiri: um Pasquim bem mais radical
Quando se fala em imprensa satírica, é quase inevitável que o brasileiro pense no Pasquim, aquele jornal debochado que, nos anos de chumbo, ousou desafiar a censura com ironia, trocadilhos e entrevistas provocativas. Mas se o Pasquim foi ousado, Hara-Kiri — a publicação francesa fundada em 1960 por François Cavanna e Georges Bernier (conhecido como Professeur Choron) — foi algo além: uma verdadeira explosão iconoclasta que deixou marcas profundas no jornalismo, na arte gráfica e na política francesa.
Fundado originalmente como uma revista mensal de humor negro, Hara-Kiri logo ganhou o subtítulo “journal bête et méchant” (jornal burro e malvado), que mais do que uma provocação era uma declaração de princípios. Com um espírito niilista, anticlerical e antiautoritário, o periódico atacava sem piedade o que havia de mais sagrado para a França conservadora dos anos 1960 e 1970: a Igreja Católica, o Exército, o Estado e, por vezes, até a esquerda institucionalizada. Nenhuma vaca era sagrada demais.
“A lembrança dessa publicação selvagem nos força a refletir: será que ainda existe espaço para o escárnio bruto, o humor desconfortável e a crítica sem freios?”
Seus cartuns, com traço cru e muitas vezes escatológico, tornaram-se célebres pela crueza. As capas, geralmente grotescas e ofensivas aos olhos do establishment, eram o carro-chefe da publicação. É impossível esquecer a capa que satirizou a morte do General Charles de Gaulle com o título: “Bal tragique à Colombey: 1 mort” (“Baile trágico em Colombey: 1 morto”), zombando da linguagem banal dos jornais sobre tragédias cotidianas. Essa edição levou o governo francês a banir o jornal — o que só fez aumentar sua lenda. Pouco tempo depois, a equipe lançou Charlie Hebdo, que herdou o DNA corrosivo de Hara-Kiri.
Comparar o Hara-Kiri com o Pasquim é ilustrativo, mas é necessário entender seus contextos distintos. Enquanto o Pasquim era um sopro de liberdade no Brasil sufocado pela ditadura militar, Hara-Kiri surgia num país democrático, embora ainda preso a estruturas autoritárias herdadas da guerra e do colonialismo. O francês não queria apenas fazer rir — ele queria demolir. O humor de Hara-Kiri era anárquico, quase suicida, como o próprio nome indica. Era uma tentativa de esvaziar qualquer sentido estabelecido: um humor que mirava o absurdo da existência em si, não só os absurdos do poder.
Entre o humor e o abismo
Isso se refletia não apenas no conteúdo, mas também na forma. As páginas do jornal misturavam tipografias variadas, colagens, rabiscos e ilustrações que remetiam mais à arte bruta do que ao design gráfico convencional. Era caótico por definição. Em sua fase mais radical, chegou a publicar reportagens ficcionais com personagens inventados ou textos de puro nonsense. O objetivo não era informar, mas implodir as convenções jornalísticas — algo que os críticos da época, em sua maioria, consideravam escandaloso ou infantil. Hoje, no entanto, vemos nesse gesto um dos prenúncios da desconstrução midiática que se tornaria comum com a internet.
Há também um componente geracional importante. O Hara-Kiri expressava o espírito libertário do pós-guerra, o desencanto com as grandes narrativas e a revolta contra a hipocrisia burguesa. Não é coincidência que sua influência se intensifique nos anos do maio de 1968, quando a juventude francesa tomou as ruas e gritou contra tudo o que estivesse estabelecido. A publicação foi, nesse sentido, uma antecipação da rebeldia: uma provocação contínua a toda forma de autoridade, mesmo a de esquerda.
Claro, esse radicalismo teve um custo. A instabilidade editorial e os processos judiciais eram constantes. Muitos dos colaboradores estavam em eterna disputa com a censura francesa — mesmo numa democracia. E com o tempo, o jornal perdeu o fôlego. A irreverência se tornou rotina, e o que antes escandalizava passou a ser apenas ruído. Mas seu legado permanece, sobretudo na coragem de atravessar limites que ninguém mais ousava tocar.

Atualmente, com as redes sociais e o humor de algoritmo, talvez o Hara-Kiri pareça datado. Mas, num momento em que o politicamente correto domina tanto os debates quanto os algoritmos de visibilidade, a lembrança dessa publicação selvagem nos força a refletir: será que ainda existe espaço para o escárnio bruto, o humor desconfortável e a crítica sem freios?
Hara-Kiri não pedia desculpas, não explicava suas piadas, nem aceitava molduras ideológicas. Era uma publicação para ser queimada na fogueira — ou colocada num pedestal, dependendo do ponto de vista. Um Pasquim mais raivoso, mais desgovernado, mais feroz. E talvez, por isso mesmo, ainda mais necessário.
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