Hitchcock/Truffaut: uma aula magna
O livro Hitchcock/Truffaut é, antes de tudo, um marco na história da cinefilia. Publicado originalmente em 1966, fruto de uma série de entrevistas conduzidas por François Truffaut com Alfred Hitchcock ao longo de uma semana em 1962, a obra é muito mais do que uma longa conversa entre dois gigantes do cinema. Trata-se de um documento fundamental sobre a linguagem cinematográfica, o processo criativo e a busca obstinada por uma forma artística plena dentro da estrutura industrial do cinema.
À época, Alfred Hitchcock era celebrado como o “Mestre do Suspense” por seu sucesso comercial e técnico, mas ainda visto com certo desdém por parte da crítica acadêmica e de setores intelectuais, especialmente nos Estados Unidos. Truffaut, por sua vez, havia emergido da crítica francesa (notadamente da revista Cahiers du Cinéma) e iniciado sua própria carreira como cineasta. Ele via Hitchcock como um verdadeiro autor, no sentido que os críticos da Nouvelle Vague haviam resgatado da literatura: alguém cujo estilo, temas e obsessões atravessam cada obra, independentemente do gênero ou do orçamento.
“Em um mundo saturado de imagens, onde qualquer um pode gravar, editar e publicar vídeos em questão de minutos, o livro é um lembrete poderoso de que o cinema é mais do que a soma de suas ferramentas.”
A ideia do livro foi justamente essa: resgatar Hitchcock como artista, e não apenas como artesão eficaz de entretenimento. Durante dias, Truffaut conduziu entrevistas meticulosas, com o auxílio de um tradutor, e posteriormente organizou os diálogos com rigor, indo filme a filme, cronologicamente, da estreia de The Pleasure Garden (1925) até Marnie (1964). O resultado é fascinante: Hitchcock fala com franqueza, humor e surpreendente lucidez sobre sua obra, seus métodos, suas dúvidas e limitações. Truffaut, por sua vez, assume um papel admirável de entrevistador apaixonado, mas exigente, fazendo perguntas incisivas e não se deixando deslumbrar.
O grande mérito do livro está em como ele revela o pensamento cinematográfico de Hitchcock. Seus comentários sobre montagem, enquadramento, ritmo e direção de atores vão muito além do “como fazer”. Ele explica, por exemplo, por que uma sequência de suspense é mais eficaz se o público sabe de antemão que há uma bomba embaixo da mesa — uma lição clássica de construção dramática. Fala sobre o uso de trilha sonora como elemento narrativo, sobre o “MacGuffin” (termo que cunhou para designar o elemento narrativo que move a história, mas cujo conteúdo é irrelevante) e sobre a importância de tratar o espectador como participante ativo do filme.
A construção da linguagem cinematográfica
Esses trechos fazem do livro uma verdadeira aula magna de cinema. Mais do que um manual técnico, Hitchcock/Truffaut é uma imersão no pensamento visual, numa concepção do cinema como arte de manipular emoções por meio de imagens e sons. E talvez seja justamente aí que Truffaut tenha conseguido sua principal vitória: fazer com que o próprio Hitchcock teorizasse sua prática, ainda que relutantemente.
Ao longo das páginas, há momentos notáveis em que Hitchcock se revela comedidamente crítico de si mesmo — como quando admite que Rope (1948) foi mais um exercício de estilo do que um grande filme, ou quando diz que nunca esteve totalmente satisfeito com The Wrong Man (1956). Por outro lado, ele também é firme em defender filmes que foram subestimados por crítica e público, como The Trouble with Harry (1955). Tudo isso contribui para a construção de um retrato surpreendentemente humano de um diretor muitas vezes visto como calculista e impassível.
A longevidade da obra se comprova ainda mais com o tempo. Em 2015, cinquenta anos após a publicação do livro, o cineasta Kent Jones lançou o documentário Hitchcock/Truffaut, retomando as gravações das entrevistas e entrevistando diretores contemporâneos — Scorsese, Fincher, Assayas, Linklater, entre outros — sobre a importância desse encontro entre mestres. Fica claro ali que o livro não apenas mudou a percepção sobre Hitchcock, como também moldou a formação de toda uma geração de cineastas.
Hitchcock/Truffaut segue atual por razões que vão além do cinema. Em um mundo saturado de imagens, onde qualquer um pode gravar, editar e publicar vídeos em questão de minutos, o livro é um lembrete poderoso de que o cinema é mais do que a soma de suas ferramentas. É uma linguagem. É uma arte. E entender essa linguagem, com a clareza com que Hitchcock a explicita sob o olhar atento de Truffaut, é algo raro, valioso — e profundamente necessário.

Por isso, a leitura de Hitchcock/Truffaut ainda é obrigatória para qualquer um que leve o cinema a sério. Não como nostalgia ou culto ao passado, mas como base para compreender como se constrói uma obra que resiste ao tempo. Ao final, o que Truffaut nos entrega é mais do que uma entrevista: é uma lição sobre escuta, método e paixão. Uma aula magna — com duas palavras que bastariam para resumir tudo: cinema puro.
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