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O Ócio Criativo: chave do cotidiano?

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Em um mundo onde a pressa virou virtude e a agenda lotada se tornou medalha de honra, Domenico De Masi ousou propor uma heresia moderna: o ócio criativo. A ideia, lançada no final do século XX e cristalizada no seu livro de mesmo nome, soava quase como piada em uma sociedade que sacraliza a produtividade, o “fazer” constante, como se a vida fosse um eterno sprint corporativo. No entanto, a provocação de De Masi permanece atual — talvez ainda mais em agosto de 2025 — quando a vida digital dissolveu a fronteira entre trabalho e descanso, e todos nós viramos meio operários, meio escravos de notificação.

Segundo o sociólogo italiano, o ócio criativo não é preguiça, mas a combinação equilibrada de trabalho, estudo e lazer em uma única experiência fluida. Um “triângulo mágico” que, na prática, soa tão revolucionário quanto ingênuo. Afinal, quem, entre boletos e metas inalcançáveis, consegue misturar prazer e aprendizado no expediente? A tese é sedutora porque remete a um ideal renascentista: um sujeito que pinta quadros, lê poesia e ainda entrega relatórios. Mas a vida real parece mais com gente que tenta responder e-mails no celular enquanto frita um ovo.

“E o pior: gostamos disso. O vício em parecer ocupado virou vício em parecer criativo. Multiplicam-se coaches do ócio, retiros de “produtividade zen” e empresas que oferecem mesas de pingue-pongue como álibi para jornadas de doze horas.”

De Masi defendia que o futuro nos daria mais tempo livre, graças ao avanço tecnológico. O que ele não previu foi que a tecnologia traria consigo não apenas a automação libertadora, mas também a escravidão das telas. Trabalhamos de casa, mas também dormimos no escritório invisível que carregamos no bolso. A flexibilidade virou sinônimo de disponibilidade permanente. Se o ócio criativo é a chave do cotidiano, a fechadura foi trocada por um aplicativo de reuniões.

Ainda assim, é injusto tratar a ideia apenas como utopia. O conceito cutuca um ponto essencial: a vida não pode ser reduzida a produzir e consumir. O ócio, entendido como espaço fértil para imaginação e reflexão, sempre foi motor da cultura. Newton descobriu a gravidade descansando sob uma macieira, Arquimedes gritou “Eureka” em uma banheira e muitos romances nasceram de cafés ociosos. O ócio criativo, portanto, lembra que sem tempo livre não há civilização, só planilha.

O dilema contemporâneo do ócio

Chegamos, porém, a uma encruzilhada curiosa. Nunca tivemos tantos recursos para aliviar o trabalho e nunca estivemos tão sobrecarregados. O que mudou não foi só a tecnologia, mas a mentalidade. Vivemos sob a lógica da performance: se você não posta, não produz; se não monetiza, desperdiça; se não transforma lazer em conteúdo, é quase invisível. O descanso foi colonizado pela produtividade. Meditar virou curso online; caminhar virou planilha de passos; até dormir virou aplicativo com ranking de qualidade. É o anti-ócio criativo, a gestão industrializada do relaxamento.

E o pior: gostamos disso. O vício em parecer ocupado virou vício em parecer criativo. Multiplicam-se coaches do ócio, retiros de “produtividade zen” e empresas que oferecem mesas de pingue-pongue como álibi para jornadas de doze horas. A indústria do bem-estar se alimenta justamente daquilo que o ócio criativo deveria combater: a obsessão em medir, gerir, enquadrar até o tempo livre.

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De Masi, com seu otimismo italiano, acreditava que a sociedade caminharia para valorizar mais a qualidade de vida do que o acúmulo material. Olhando o Brasil, com filas de metrô lotadas e celulares piscando até no ônibus, parece que o caminho foi outro. Mas talvez o diagnóstico dele não esteja errado — apenas atrasado. A juventude já demonstra certo cansaço da lógica insana da hiperconexão. O fenômeno do “quiet quitting” e a busca por trabalhos menos tóxicos podem ser ecos tardios dessa ideia.

Em última instância, o ócio criativo é um convite incômodo: largar um pouco a roda de hamster da produtividade para experimentar a vida em sua inteireza. Não é sobre virar artista boêmio nem sobre abolir o trabalho, mas sobre dissolver fronteiras rígidas que nos tornam máquinas. É o lembrete de que a vida, apesar dos relatórios e boletos, também cabe em um poema, um desenho, uma conversa ou uma música ouvida sem pressa.

Domenico De Masi ousou propor uma heresia moderna: o ócio criativo (Foto: EAD)
Domenico De Masi ousou propor uma heresia moderna: o ócio criativo (Foto: EAD)

O problema é que o capitalismo aprendeu a transformar até esse convite em mercadoria. O ócio criativo virou produto de prateleira: cursos, workshops, consultorias. Ironia máxima: precisamos pagar para aprender a descansar. Talvez, no fim, o mais subversivo seja fazer o que já faziam nossos avós: sentar na calçada, prosear, perder tempo sem culpa. O ócio, afinal, nunca precisou de manual.


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