O sangue em Hillsborough chocou um país
No dia 15 de abril de 1989, 96 torcedores do Liverpool saíram de casa para assistir a uma semifinal da Copa da Inglaterra e nunca mais voltaram. O que deveria ser uma celebração do futebol — paixão nacional britânica — tornou-se uma tragédia que expôs a negligência das autoridades, o desprezo por vidas trabalhadoras e a cultura de culpabilização que por anos silenciou as vítimas. Hillsborough não foi apenas uma falha organizacional. Foi um trauma coletivo. Um colapso da responsabilidade pública. E, mais profundamente, uma ferida aberta que, mesmo 36 anos depois, ainda sangra na memória do Reino Unido.
Naquele sábado, o estádio de Hillsborough, em Sheffield, recebeu a partida entre Liverpool e Nottingham Forest. O setor destinado aos torcedores do Liverpool, conhecido como Leppings Lane, ficou perigosamente superlotado. A decisão da polícia de abrir um dos portões externos para aliviar a pressão na entrada levou a uma avalanche humana nas arquibancadas já cheias, e dezenas foram esmagados contra grades de ferro. Muitos morreram ali, sem ar, sem espaço, sem socorro.
Mas a tragédia em si não foi o único escândalo. Logo após os acontecimentos, começou uma das campanhas de desinformação mais cruéis da história recente do esporte. Em vez de reconhecer os erros gritantes da polícia e das autoridades do estádio, parte da imprensa — liderada pelo tablóide The Sun — acusou os próprios torcedores de causarem a tragédia. Inventaram histórias sobre saques a corpos, agressões a policiais, comportamento embriagado e selvagem. E o governo britânico, na época liderado por Margaret Thatcher, se alinhou rapidamente a essa narrativa. Durante décadas, a versão oficial colocou a culpa nas vítimas.
Quando o Estado falha, quem responde?
Foi preciso que famílias enlutadas lutassem por anos para que a verdade viesse à tona. Através de inquéritos, revisões e investigações independentes — sobretudo após a publicação do Hillsborough Independent Panel em 2012 — comprovou-se o que muitos já sabiam: os torcedores eram inocentes. A polícia foi negligente. A gestão do estádio, irresponsável. E o Estado, conivente.
Mesmo com o reconhecimento tardio das falhas institucionais, o sistema de justiça britânico foi lento — e, muitos diriam, relutante — em punir os responsáveis. Em 2016, um júri concluiu que as 96 mortes foram resultado de homicídio culposo, causado por falhas da polícia. No entanto, em julgamentos posteriores, ninguém foi condenado. David Duckenfield, o comandante policial responsável pela operação no estádio, foi absolvido em 2019, mesmo após admitir que autorizou a abertura do portão que causou a superlotação mortal. A frustração pública foi imensa. Muitos pais, irmãos e viúvas morreram sem ver justiça.
O episódio de Hillsborough não se resume ao futebol. Ele é um retrato do que acontece quando as instituições colocam a autoproteção acima da verdade. Mostra como a palavra da autoridade é, muitas vezes, tratada como infalível — mesmo quando os fatos apontam o contrário. E evidencia como classes populares são as primeiras a serem descartadas, ignoradas ou criminalizadas quando algo dá errado.

Hillsborough ainda traz reflexos. A luta das famílias inspirou mudanças na forma como o futebol é organizado no Reino Unido. Os estádios foram reformulados. A cultura de “culpa do torcedor” foi desafiada. Mas há lições ainda não plenamente absorvidas. A falta de responsabilização penal dos envolvidos deixou uma mancha permanente no sistema judicial britânico. O Estado pediu desculpas, sim, mas de forma tardia, pressionado pela persistência de cidadãos comuns que se recusaram a aceitar o silêncio como resposta.
Além disso, Hillsborough influenciou como se fala sobre segurança em eventos de massa. Muitos dos protocolos modernos em estádios, festivais e manifestações foram redesenhados à luz da tragédia. E, ainda que isso represente um legado técnico importante, ele não redime o sofrimento imposto por décadas a quem só queria a verdade.
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.
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