Pandemia ligou alertas na medicina diagnóstica
Com a Reforma Tributária tramitando no Congresso Nacional, o setor de saúde reforça sua preocupação com os resultados de uma reforma fiscal que, a princípio, não considera a função social da medicina diagnóstica no conjunto de atividades relacionadas a saúde e bem-estar da população, deixando assim de enxergar as especificidades de segmentos altamente estratégicos e essenciais para a manutenção da sociedade. Estudo elaborado pela Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) elenca alguns cenários que a reforma pode trazer para o atendimento assistencial. O principal deles está em um possível aumento de até 40,4% na carga tributária de laboratórios e clínicas de imagem. “O sistema tributário brasileiro é, de fato, disfuncional e tem uma complexidade que contribui para a construção de um ambiente de negócios pouco favorável a investimentos e empregabilidade. Precisamos de uma reforma focada na simplificação dos processos com objetivo de reduzir, entre outros entraves, o custo de conformidade. Porém, onerar ainda mais o segmento de saúde inviabilizará a atuação de inúmeras empresas de medicina diagnóstica, que deixarão de existir, especialmente em regiões menos desenvolvidas economicamente”, comenta Priscilla Franklim Martins, experiente executiva da área de saúde, especializada em Relações Institucionais e diretora executiva da Abramed.
Priscilla, como avalia a qualidade dos testes do coronavírus nesse momento?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) segue apontando o teste molecular RT-PCR como o padrão ouro para diagnóstico da Covid-19, e o Brasil segue essa diretriz para a testagem na fase aguda da doença. É um teste extremamente confiável devido à alta sensibilidade e especificidade.
Paralelamente, surgiram os testes sorológicos, que, diferentemente do RT-PCR (que identifica a carga genética do vírus em amostras naso e orofaríngeas dos pacientes), trabalha para detecção e quantificação de anticorpos. Esses testes sorológicos desenvolvidos em laboratório têm alta qualidade e estão a cada dia mais confiáveis. Hoje, por exemplo, já são oferecidos kits (reagentes) de anticorpos totais, ou seja, testes que detectam tanto IgM quanto IgG, pois acredita-se que assim são mais assertivos, já que a produção de anticorpos pelos pacientes infectados varia muito e pode até ser simultânea para os dois anticorpos citados. Já os testes rápidos, que são os que fazem análises por uma amostra de sangue obtida por um pequeno furo na ponta do dedo do paciente, não são todos confiáveis, pois, comprovadamente podem gerar muitos resultados tanto falso-negativos quanto falso-positivos.
A fim de verificar e divulgar a qualidade desses testes, foi lançado o Programa de Avaliação de Kits para SARS-CoV-2, uma iniciativa da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) em parceria com a Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial (CBDL), a Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC) e a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) que está validando diferentes kits de reagentes relacionados à Covid-19 disponíveis no mercado brasileiro e publicando os resultados em testecovid19.org.
Poderemos ter uma ampliação de testes em pouco tempo?
A ciência, apoiada pelos laboratórios, trabalha diariamente para isso, criando inclusive alternativas que facilitem o acesso populacional. Na rede privada, por exemplo, novos métodos estão sendo desenvolvidos. Além de investir em sua infraestrutura para realizar mais testes tanto RT-PCR quanto sorológicos, laboratórios brasileiros já desenvolveram outros métodos diagnósticos para identificação da Covid-19 na fase aguda, entre eles o teste por proteômica, que identifica a proteína do SARS-CoV-2 em amostras nasofaríngeas; o sequenciamento genético de nova geração, que utiliza tanto amostras nasofaríngeas quanto saliva para detecção do vírus; e o RT-LAMP, que também é um exame molecular com sensibilidade um pouco menor, mas menos invasivo, já que utiliza amostras de saliva.
O que dificulta essa ampliação?
O Brasil é um país continental. É injusto compararmos, por exemplo, o nosso vasto território e nossos quase 210 milhões de habitantes com nações como a Coreia do Sul, apontada como um exemplo de testagem. Na Coreia do Sul, além de ser um país territorialmente pequeno, são pouco mais de 50 milhões de pessoas em busca de testes. Aqui temos questões logísticas a enfrentar, culturais e muitas outras dificuldades típicas de países em desenvolvimento.
Além disso, o teste que é apontado como o padrão ouro é um teste molecular de alta complexidade, cujos reagentes estão sendo disputados em escala internacional, e apenas laboratórios com infraestrutura adequada e profissionais altamente treinados podem realizar. Para sanar esses entraves, o país vem atuando tanto para aumentar a capacidade de testes quanto para aumentar o acesso. E a tendência é que consigamos melhorias dia após dia. Um ponto importante a ser considerado é que de nada adianta realizar testes sem que haja comunicação dos resultados às autoridades sanitárias brasileiras encarregadas da vigilância epidemiológica. São eles que podem orientar sobre necessidade de quarentena e isolamento de contatantes, algo que contribuirá efetivamente para a resolução da pandemia, enquanto não dispomos de vacinas.
Teremos menos falsos-negativos com essa ampliação e com essa qualidade?
O resultado falso não está atrelado diretamente à quantidade de testes realizados, mas sim à qualidade dos reagentes usados, ao respeito às boas práticas laboratoriais e à capacitação profissional de quem o realiza. É importante enfatizar que não há autoteste para Covid-19, ou seja, não existe nenhum exame confiável e aprovado pelas comunidades científicas que o paciente possa fazer sozinho, em casa. Todos os testes, mesmo os testes rápidos, exigem capacitação profissional para execução e interpretação de resultados.
Por isso é tão importante a iniciativa das entidades setoriais de avaliar os testes disponíveis em território nacional e o compartilhamento de informação para que todos compreendam que o teste de Covid-19 deve sempre ser indicado e realizado por um profissional de saúde, visto que cada teste deve respeitar uma janela imunológica a fim de entregar resultados confiáveis, e que esses resultados precisam ser muito bem interpretados.
Gostaria que falasse um pouco da Abramed e da atuação da associação nesse momento histórico e complexo.
A Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) foi criada em 14 de julho de 2010, quando oito instituições privadas do setor se uniram a fim de aumentar os esforços do segmento diante de um cenário repleto de desafios, mudanças e evoluções. Na época, o sistema de saúde brasileiro vivia a consolidação de um novo perfil empresarial e enfrentava mudanças necessárias em suas regulamentações. E, então, a Abramed foi constituída para dialogar e colaborar com instituições públicas, governamentais e regulatórias, sempre levando os pleitos do setor e reforçando a importância da medicina diagnóstica para a saúde da população.
Agora, dez anos depois da sua criação, a entidade enfrenta realmente um momento histórico. Diante da crise gerada pelo novo coronavírus, o setor de medicina diagnóstica ganhou ainda mais protagonismo, visto que desde o início da pandemia há uma ampla discussão sobre a importância dos testes para a elaboração de estratégias de contenção desse patógeno. Temos trabalhado para melhorar a situação das empresas de diagnóstico no país, sempre olhando para todo o sistema de saúde. Atuamos em muitas frentes e tivemos algumas conquistas: fast tracking de insumos para exames de diagnóstico da Covid-19 pela Anvisa; linhas de crédito concedidas pelo BNDES e Ministério da Economia para laboratórios e clínicas de imagem que tiveram redução expressiva de faturamento com a queda de atendimento durante a pandemia; criação de um programa de validação de desempenho e eficácia de testes registrados pela Anvisa; auxílio no encaminhamento de resultados de exames ao Ministério da Saúde, entre outros.
Quais são os maiores desafios da medicina diagnóstica no Brasil?
A pandemia de Covid-19 nos ligou novos alertas no setor. Ficou muito evidente, por exemplo, a dependência brasileira da indústria internacional de insumos para realização de testes diagnósticos diversos. Precisamos incentivar a produção nacional, investindo na fabricação interna desses reagentes para que possamos tanto atender à nossa própria demanda, quanto contribuir com a cadeia global de saúde. Diante do novo coronavírus, observamos uma disputa mundial por esses insumos e notamos que não podemos continuar cometendo esse erro. A estruturação de serviços públicos para fazer frente a novos desafios de saúde pública foi outra coisa que se revelou necessária.
Além disso, precisamos sempre continuar lutando para a compreensão da relevância da prevenção e do diagnóstico precoce como pilar da segurança do paciente e de prognósticos muito melhores; pelo melhor diálogo entre o setor público e o privado e para a ampliação do acesso de forma exponencial dentro do nosso território.
Paralelamente, considerando um cenário pós-crise, laboratórios e clínicas terão de se adequar para que possam atender à possível demanda represada de exames, procedimentos que deixaram de ser feitos durante os últimos meses e começarão a ressurgir assim que o cidadão brasileiro se sentir seguro e retomar as rédeas da prevenção e promoção da saúde.
E as principais tendências?
Não há como deixarmos de notar que a tecnologia também assumiu um papel importante na luta contra o novo coronavírus. Na medicina diagnóstica, a telerradiologia e a telepatologia já são uma realidade há mais de dez anos, auxiliando na ampliação de acesso de todas as regiões brasileiras, mesmo as mais remotas, à análise e laudos de exames complexos. Essa necessidade de adesão tecnológica apenas vai se intensificar e é importante que laboratórios e clínicas tenham a cultura da inovação em seu DNA, buscando sempre alternativas para automatizar processos, conquistar resultados mais assertivos e garantir diagnósticos cada vez mais precoces, melhorando os desfechos dos pacientes.
Quanto o segmento movimenta atualmente no país?
Em 2019 a saúde suplementar realizou 916 milhões de exames complementares, o que representa um crescimento de 6,4% no comparativo com 2018. Trazendo essa visão para a ótica financeira, o mercado movimentou R$ 36 bilhões com a realização de exames laboratoriais e de imagem no ano de 2019. Quando consideramos outras fontes de pagamento como, por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) e pagamentos diretos, a estimativa é que o setor tenha movimentado entre R$ 44 e R$ 48 bilhões no ano passado.
Porém, devido à pandemia, nossa expectativa para 2020 não deve se concretizar. Acreditávamos que ao longo deste ano seriam realizados 960 milhões de exames na saúde suplementar, gerando uma receita média de R$ 37,2 bilhões. Porém, considerando os efeitos da Covid-19, esperamos que o resultado deste ano consolide uma redução em torno de 20% tanto na quantidade de exames quanto na receita proveniente dos planos de saúde, que são a principal fonte de receita do segmento.
Quais serão os reflexos da Reforma Tributária no setor?
A proposta de Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional nos traz preocupação, pois, pode gerar ainda mais dificuldade no acesso e no atendimento de qualidade a todos os cidadãos brasileiros. Com o modelo de reforma sugerida pelo Governo, que preza pela unificação do PIS/Pasep e da Cofins, prevemos impactos muito profundos em todas as pontas da cadeia.
Na medicina diagnóstica, a reforma pode ampliar em mais de 40% a carga tributária de laboratórios e clínicas de imagem. Assim, muitas unidades fecharão, muitos profissionais perderão seus empregos, e aquelas empresas que resistirem terão drástica redução em seus recursos destinados à pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Com o aumento da carga tributária, a saúde suplementar terá de reajustar os preços dos planos de saúde, o que levará a uma debandada dos beneficiários para a Saúde Pública. E não podemos nos esquecer de que o Sistema Único de Saúde (SUS) já está estrangulado, terá de se recuperar dos impactos da Covid-19, ao mesmo tempo que precisará absorver todos os pacientes migrantes da saúde suplementar.
Vemos que, nesses moldes, a Reforma Tributária é míope por não enxergar que saúde é um setor essencial e o Brasil vai na contramão de tantos países desenvolvidos que também utilizam a estratégia do imposto único, porém entregam isenção, ou criam alíquotas diferenciadas à saúde.
Acredita que o setor perderá capacidade de investimentos?
Sem sombra de dúvidas. Além de gerar uma nova onda de desempregos, assistiremos a uma defasagem na medicina diagnóstica que carece de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Na pandemia mesmo vimos a importância de uma medicina diagnóstica forte, e com essa proposta de Reforma Tributária será impossível manter a qualidade e as tecnologias necessárias para o melhor atendimento populacional.
O que poderia ser feito para contornar esse dilema?
Concordamos que o Brasil precisa de uma Reforma Tributária. Sabemos da importância de termos uma desburocratização para que possamos tanto reduzir as dificuldades de cumprimento dos tributos internos quanto melhorar a frequência de investimentos externos. Porém, estamos batalhando para que os poderes Legislativo e Executivo enxerguem a essencialidade da saúde. Sempre falamos que ninguém escolhe ficar doente e que saúde, além de um direito constitucional, é serviço essencial, não optativo.
Dessa forma, acreditamos que seguir rumos internacionalmente já testados e aprovados é o melhor caminho. Para isso, consideramos importante que o setor de saúde tenha neutralidade e seja visto como essencial, ou seja, que a Reforma Tributária pratique isenção ou alíquotas diferenciadas para esse segmento.
Última atualização da matéria foi há 2 anos
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