Rádios AM locais: da nostalgia ao fim
Durante décadas, elas foram a trilha sonora de cidades pequenas, vilarejos esquecidos e madrugadas insones. Com chiados característicos e vozes ora trovejantes, ora embargadas de emoção, as rádios AM locais desempenharam um papel essencial na cultura popular brasileira. Eram parte do cotidiano, anunciando a missa de sétimo dia, oferecendo salves à comunidade e transmitindo futebol de várzea com uma dramaticidade que faria corar um Galvão Bueno. Mas, ao que tudo indica, estamos assistindo ao último ato dessa ópera modulada.
O Ministério das Comunicações (MCom) encerrou o prazo para a migração das rádios AM locais para a frequência FM no último dia de 2023. Desde o decreto presidencial de 2013, que oficializou o início da transição, 1.185 emissoras já trocaram de faixa, num movimento que mescla modernização, necessidade técnica e, para muitos, um golpe de misericórdia em um símbolo radiofônico nacional. Em teoria, tudo soa muito técnico e razoável: a faixa AM sofre mais interferências, a qualidade de áudio é inferior e a penetração junto ao público vem caindo. Mas a realidade é bem mais complexa – e um tanto melancólica.
“Mas é justamente por isso que a rádio local tinha valor: era a voz onde não havia imagem. Substituí-la por plataformas digitais pode parecer um avanço, mas, para muitos, será simplesmente o silêncio.”
Segundo o próprio governo, as rádios AM locais que não optaram por migrar terão suas outorgas redirecionadas para o que chamam de AM regional, com alterações técnicas. Uma sobrevida sem alma, talvez. A migração, contudo, não era gratuita – cada emissora teve que pagar um valor pela nova outorga em FM, com critérios muitas vezes considerados onerosos para pequenas rádios comunitárias ou familiares. O discurso oficial diz que a população será beneficiada com mais acesso à informação e melhor qualidade de som. Mas é difícil não perceber que o processo, embora legítimo, empurrou muitos pequenos radiodifusores ao abismo da inviabilidade.
A migração também cobra seu preço simbólico: o fim da rádio como território comunitário, aquela que lia os bilhetes da padaria, que anunciava o bingo da paróquia, que fazia piada com o nome dos ouvintes e que errava solenemente sem perder a dignidade. Com a padronização da faixa FM, o que temos não é apenas uma transição técnica, mas uma espécie de higienização cultural que pode acabar por calar vozes que, embora rudimentares, ainda eram ecos do Brasil profundo.
Silêncio nos campos: o Brasil que deixa de se ouvir
A morte lenta das rádios AM locais é, antes de tudo, o lamento de um país que não cuida das suas margens. Com a migração, perderemos muito mais do que chiados e microfonias: perderemos sotaques. Rádios AM locais não são apenas transmissores – são documentos vivos de um Brasil oral, de uma tradição comunicativa que se ancorava na informalidade e na familiaridade. Eram também espaços de experimentação e resistência: quantos comunicadores improvisaram sua própria emissora com um transmissor caseiro, um microfone comprado em loja de peças e uma vontade gigantesca de falar com seus vizinhos?
É claro que os tempos mudaram. Hoje, o jovem médio ouve podcast no Spotify, o idoso descobre vídeos no YouTube e o agricultor, se tiver sinal, prefere ouvir música sertaneja em playlists do WhatsApp. A internet chegou aonde a AM não alcançava. Mas é justamente por isso que a rádio local tinha valor: era a voz onde não havia imagem. Substituí-la por plataformas digitais pode parecer um avanço, mas, para muitos, será simplesmente o silêncio.
Além disso, o espaço FM já está saturado nas grandes cidades. O que se observa é que boa parte das rádios que migraram acabou adotando formatos comerciais genéricos, apostando em música popular ou jornalismo repetitivo, sem personalidade própria. Aquela rádio AM que trazia debates políticos acalorados, programas religiosos caseiros, ou mesmo a crônica policial sem filtros, vai sendo substituída por “mais do mesmo” – uma diluição cultural que empobrece o espectro.
O governo fala em modernização, mas não promoveu políticas reais de fomento à diversidade de conteúdo. Não houve plano de inclusão digital para esses comunicadores, tampouco incentivos para manter a pluralidade regional no novo dial. O resultado? Uma homogeneização que serve aos grandes grupos e deixa os pequenos na poeira das faixas que agora se fecham. Em vez de criar novas possibilidades, fechou-se uma porta de expressão – com requintes de burocracia.
Não se trata aqui de ser contra o avanço tecnológico. Mas de questionar qual o custo social de uma migração que apaga identidades e apressa o fim de uma era antes de garantir que a próxima esteja realmente pronta para acolher todos. A rádio AM local era o ponto de encontro de uma cidade, uma extensão do coreto da praça, da igreja, da feira. Retirá-la do ar sem um projeto cultural que sustente sua vocação é como demolir um mercado municipal e substituí-lo por um shopping de franquias: ganha-se em aparência, perde-se em essência.

Quem procurar no dial por aquelas vozes de antigamente talvez encontre apenas estática. E, ironicamente, essa estática dirá muito sobre o que nos tornamos.
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