Shakespeare Apaixonado: ainda torcem o nariz
Em 1999, quando Shakespeare Apaixonado levou para casa sete estatuetas do Oscar — incluindo a de Melhor Filme — o mundo cinéfilo sofreu um baque que até hoje provoca comichões em críticos e fãs mais exigentes. Como assim um pastiche romântico e açucarado bateu O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg? Como assim Gwyneth Paltrow foi coroada Melhor Atriz num ano em que Cate Blanchett, por Elizabeth, entregava uma performance de rainha literalmente irretocável? Vinte e seis anos depois, a resposta ainda provoca ranger de dentes — e, para alguns, um sonoro “não aceito”.
O filme dirigido por John Madden — e produzido pelos titãs Harvey Weinstein (sim, ele mesmo, antes da queda estrondosa) e Marc Norman — parece, para uma fatia barulhenta da crítica, mais uma aula de como bajular a Academia com floreios shakespearianos misturados à leveza de uma comédia romântica de final de tarde. Nada contra a leveza, mas o problema, dizem, é que ela foi disfarçada de “cinema sério” o suficiente para passar à frente de obras mais densas, mais sombrias e, convenhamos, mais masculinas — o que também levanta outras camadas de discussão. Seria Shakespeare Apaixonado vítima de misoginia crítica tardia ou apenas um bom filme superestimado?
“O que aconteceu ali foi uma conjunção de talentos bem coordenados, charme visual e a máquina implacável do marketing premiando uma fantasia sobre o maior escritor de todos os tempos com toques de novela das seis.”
A estrutura narrativa é uma delícia para quem aprecia metalinguagem e referências teatrais. William Shakespeare, vivido por Joseph Fiennes com olhares lânguidos e penas suadas, é um jovem dramaturgo em bloqueio criativo, prestes a entregar algo que ainda nem sabe o que é — e esse algo, claro, acaba sendo Romeu e Julieta, moldado a partir de um amor proibido com a aspirante a atriz (e mulher de nobre) Viola de Lesseps, interpretada com doçura por Paltrow.
A sacada do roteiro é justamente essa: fazer de Romeu e Julieta um espelho da paixão vivida entre o autor e sua musa fictícia. Tudo costurado com poesia pop, drama comediante e sotaques britânicos de catálogo.
Romance de época ou manipulação moderna?
Eis onde mora o espinho. Shakespeare Apaixonado é, essencialmente, um “what if?” literário disfarçado de grandiloquência histórica. A ideia de reimaginar Shakespeare como um jovem galante, enrolado em lençóis e versos, pode agradar quem busca um entretenimento caprichado, mas também soa, para os mais puristas, como uma fanfic produzida por um fã de Austen dopado de açúcar. Há beleza? Sim. Há graça? Também. Mas há densidade suficiente para superar o espetáculo brutal e inesquecível de O Resgate do Soldado Ryan? Muitos gritam que não, ainda hoje.
A Academia, na época, sucumbiu ao lobby feroz de Harvey Weinstein, figura central no sucesso do filme. A Miramax investiu milhões em campanhas de convencimento, envio de cópias a votantes e presença ostensiva em festas e eventos. Foi o apogeu da máquina de prêmios corporativos. E aí está uma parte importante da história: Shakespeare Apaixonado não ganhou por ser o melhor filme, mas por ser o mais bem vendido. O Oscar de 1999, nesse sentido, virou uma aula magna de como marketing e prestígio podem fabricar vitórias que nem sempre ecoam a longo prazo.
Claro, isso não é culpa do filme em si. A direção é precisa, os figurinos são esplendorosos (e merecidamente premiados), o elenco coadjuvante — com Judi Dench reinando como Elizabeth I por meros oito minutos — entrega charme e autoridade. E a trilha de Stephen Warbeck embala tudo com melodia e um quê de épico romântico que ajuda a sustentar a ilusão. Mas o tempo, esse juiz implacável, não tem sido exatamente generoso. O filme é lembrado, sim — mas mais pelo escândalo da vitória do que pelo brilho próprio.
É como uma peça menor que, por algum mistério, acabou estrelando a noite principal. Não que seja ruim — Shakespeare Apaixonado tem méritos evidentes, roteiro espirituoso e direção elegante. Mas o Oscar o colocou numa prateleira para a qual talvez não tivesse bilhete. O que aconteceu ali foi uma conjunção de talentos bem coordenados, charme visual e a máquina implacável do marketing premiando uma fantasia sobre o maior escritor de todos os tempos com toques de novela das seis.

No fim, a pergunta que persiste é: e se a Academia não tivesse caído de amores? E se Shakespeare não tivesse sido tão apaixonado por votos? A resposta talvez não importe mais. O filme já está em seu lugar no panteão dos premiados que dividem opiniões. Nem todos os amores são eternos, afinal. Alguns são apenas… convenientes.
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