“Silence”: profundo e pouco falado
Por algum motivo curioso — ou talvez por razões bastante previsíveis — Silence (2016), de Martin Scorsese, nunca teve o mesmo alcance que outros projetos do cineasta. Não virou conversa de bar como Os Bons Companheiros, nem gerou memes como O Lobo de Wall Street. Porém, entre os filmes mais densos de Scorsese, poucos são tão corajosos, delicados e brutais quanto esse. Silence não se oferece ao espectador. Ele exige. E talvez por isso, até hoje, quase dez anos após o lançamento, permanece como um tesouro oculto para os que desejam pensar mais do que apenas consumir.
Inspirado no romance homônimo do escritor japonês Shūsaku Endō, Silence conta a jornada de dois padres jesuítas portugueses (interpretados por Andrew Garfield e Adam Driver) em pleno século XVII. Eles viajam ao Japão para buscar seu mentor desaparecido (Liam Neeson) e enfrentar uma missão quase suicida: manter viva a fé cristã em um país que, à época, caçava implacavelmente qualquer vestígio de cristianismo.
“Quase uma década depois, Silence permanece como um filme urgente justamente por ser atemporal. Sua reflexão sobre fé, dúvida, poder e sacrifício continua atual.”
Não é um épico tradicional. O filme não investe em grandes batalhas ou efeitos chamativos. Ao contrário, mergulha o público em uma espiral de silêncio — não só o silêncio de Deus diante do sofrimento humano, mas também o silêncio do mundo perante a luta íntima de quem tenta sustentar a própria fé quando ela parece absolutamente insustentável. Em um tempo dominado por gritaria virtual, Silence já parecia um filme fora do lugar em 2016. Agora, em 2025, soa quase um ato contracultural.
Um dos méritos centrais do filme é justamente não oferecer respostas fáceis. Scorsese, que desde sempre trabalhou temas como culpa, fé e redenção em sua filmografia (basta lembrar de A Última Tentação de Cristo), aqui leva essa reflexão a um patamar extremo. O dilema dos protagonistas não é apenas sobreviver. É decidir se vale a pena morrer (e fazer outros morrerem) por uma ideia — ou se a renúncia pública de uma crença não seria, paradoxalmente, a atitude mais cristã possível.
A dúvida é mais cinematográfica que a fé
Andrew Garfield carrega o peso desse dilema com um desempenho discreto e doloroso. A sua jornada vai muito além do sofrimento físico: é um tormento espiritual, um processo de erosão íntima. E se Garfield carrega o filme no emocional, o contraponto filosófico vem na figura quase blasfema do personagem de Liam Neeson, que personifica a ambiguidade máxima: a conversão como salvação ou traição?
Outro destaque é a fotografia de Rodrigo Prieto, que transforma a natureza do Japão em uma espécie de personagem adicional — bela e hostil, serena e ameaçadora. As imagens falam tanto quanto os personagens, em um jogo de contemplação e desespero. O silêncio, aqui, não é vazio: é preenchido por dúvida, medo, coragem, fraqueza.
Mas não dá para negar: Silence é um filme difícil. Sua duração (quase três horas), o ritmo contemplativo, o peso filosófico e a ausência de resoluções claras o tornam uma experiência desafiadora para o espectador médio. Talvez por isso tenha sido ignorado por parte da crítica e pelo grande público, e até mesmo por muitos fãs de Scorsese que preferem o diretor no modo gângster.
É curioso pensar que um diretor com o status de Scorsese tenha feito um filme assim: profundo, lento, anti-popular. Mas, ao mesmo tempo, isso confirma sua integridade artística. Ele fez Silence não para agradar plateias, mas porque precisava fazer. Como se fosse um acerto pessoal, um filme que nasceu mais da devoção do que da ambição comercial.

Quase uma década depois, Silence permanece como um filme urgente justamente por ser atemporal. Sua reflexão sobre fé, dúvida, poder e sacrifício continua atual. Talvez mais ainda hoje, em um mundo no qual as convicções são muitas vezes barulhentas e superficiais, e onde poucos param para contemplar a angústia silenciosa da dúvida honesta.
O silêncio de Scorsese fala alto. Só não escuta quem não quer.
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