A TV 3.0 salvará as emissoras do país?
Há décadas a televisão aberta brasileira funciona como um sismógrafo da cultura nacional. Em seus picos de audiência, o país se vê refletido num espelho iluminado em HD — novela das nove, futebol, Jornal Nacional, reality show. Mas esse império que moldou costumes, linguagens e até políticas públicas parece hoje desbotado. A chegada da chamada TV 3.0 — promessa de maior interatividade, qualidade de imagem, som imersivo e transmissão adaptada ao gosto do freguês — surge como o último elixir milagroso. Mas será ela capaz de redimir as emissoras, cujas estruturas inchadas, dívidas impagáveis e grades enferrujadas afastam o público e os anunciantes?
Tomemos o exemplo do Grupo Globo, o carro-chefe. No primeiro trimestre de 2025, registrou R$ 4,1 bilhões de receita líquida, 13% acima do ano anterior. Parece ótimo, mas o detalhe salta aos olhos: esse crescimento foi puxado pelo streaming (Globoplay, Premiere), e não pelo canal aberto, que amargou a pior audiência da história em dezembro de 2024. O salto veio também de aquisições como Telecine e Eletromídia, ou seja, mais portfólio para uma mesma audiência em queda. Em outras palavras, a Globo está migrando para onde o dinheiro flui — e não é no televisor tradicional.
“O público, cada vez mais fragmentado, não é refém do aparelho; é dono do tempo e escolhe o que quer assistir, quando quer. As emissoras parecem não ter entendido que “grade” hoje é um conceito antiquado, um cartaz de cinema que ninguém mais lê.”
Na outra ponta, a RedeTV! vive o pesadelo de quem dormiu no ponto. Estreou com promessas de juventude em 1999, teve seu apogeu com o “Pânico na TV”, mas hoje virou um shopping de horários alugados para igrejas e infomerciais. Zero de Ibope e zero de risco criativo. Não há TV 3.0 que ressuscite quem não tem projeto artístico, nem público disposto a acompanhar. Interatividade não salva uma vitrine vazia.
A Record, por sua vez, saiu do vermelho com injeção da Igreja Universal e cortes cirúrgicos. Mas o remédio cortou carne demais: publicidade tímida, audiência irregular, e uma programação que se equilibra entre novelas bíblicas e jornalismo fragmentado. É um modelo que já se provou insuficiente para segurar patrocinadores exigentes. A Band arrasta dívidas bilionárias e corre risco de falência técnica; o SBT, órfão de Silvio Santos, perdeu identidade e estabilidade de programação; a TV Cultura sobrevive com verbas contingenciadas e apelos ao setor privado; e a Gazeta, quase irreconhecível, cedeu quinze horas diárias ao televangelismo e vendeu boa parte do que tinha de mais charmoso. O diagnóstico é amplo e grave: não é o sinal que está ruim; é o conteúdo e o modelo de negócio que desabaram.
O mito do salto tecnológico redentor
Os defensores da TV 3.0 argumentam que a integração entre transmissão aberta e internet permitirá personalizar publicidade, medir audiência em tempo real e oferecer experiências interativas inéditas. Seria o casamento entre o alcance massivo da TV e a segmentação do digital. Em teoria, isso aumenta a atratividade para anunciantes e devolve às emissoras um protagonismo perdido para YouTube, TikTok, plataformas de streaming e podcasts. Mas há um, porém: tecnologia não cria relevância sozinha. É preciso um ecossistema criativo, ousadia editorial e renovação de quadros.
No Brasil, a história mostra que emissoras costumam receber novas tecnologias como quem troca de figurino sem mudar de texto. Foi assim com a TV em cores, com o HD e até com a interatividade do sinal digital: belas promessas que nunca vingaram de fato porque faltava conteúdo e estratégia. O público, cada vez mais fragmentado, não é refém do aparelho; é dono do tempo e escolhe o que quer assistir, quando quer. As emissoras parecem não ter entendido que “grade” hoje é um conceito antiquado, um cartaz de cinema que ninguém mais lê.
Para que a TV 3.0 faça sentido, as emissoras terão de abandonar a lógica da programação linear e apostar em hubs de conteúdo com múltiplas janelas, formatos nativos para redes sociais e produtos transversais. Isso implica investimento, risco e paciência — três palavras escassas no vocabulário de empresas atoladas em dívidas ou dependentes de verbas públicas. Não basta comprar equipamentos de ponta; é preciso contratar roteiristas, produtores, artistas, inovar na linguagem, formar novos públicos.
Se a promessa de personalização for usada apenas para vender mais minutos para igrejas, televendas e influencers de ocasião, o resultado será um Frankenstein tecnológico, um carro voador que só anda no chão. O público já provou ser menos conservador que as emissoras: aceita novas linguagens, formatos curtos, crossovers, narrativas colaborativas. Falta às TVs abertas coragem para experimentar sem medo de perder os últimos fiéis do sofá.
A chegada da TV 3.0 no Brasil é, sem dúvida, um avanço técnico importante e pode abrir novas fronteiras comerciais. Mas não é a pedra filosofal da comunicação. No máximo, dará fôlego para quem já está preparado. Quem não está, continuará agonizando, só que agora em 4K, som espacial e botões coloridos. Em última análise, não é a tecnologia que salvará as emissoras, mas o entendimento de que o público já não é massa, é multidão conectada.
As emissoras brasileiras parecem viver um dilema shakespeariano: mudar ou perecer. A diferença é que não têm mais décadas de monopólio para decidir. Com a ascensão do streaming, das redes sociais e dos criadores independentes, o velho “canal 5” da sua cidade virou apenas mais um ícone na tela inicial da Smart TV. A pergunta que dá título a esta resenha não é retórica: a TV 3.0 salvará as emissoras do país? Talvez algumas. As outras, como os dinossauros, virarão fósseis para os arqueólogos digitais do futuro estudarem.

No fundo, a TV 3.0 é menos uma promessa e mais um teste de caráter: quais emissoras têm a ousadia de reinventar-se e quais preferem apenas transmitir o mesmo de sempre, agora com brilho novo. E aí, a culpa não é do sinal nem da tecnologia. É das escolhas feitas no andar de cima — e do público, que já vota com o controle remoto, o clique e o dedo no “pular anúncio”. O resto é ruído em alta definição.
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