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Israel sem limites: e agora?

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Poucas cenas são tão cinematográficas quanto a que se desenrolou em Doha: Israel decide atacar integrantes do Hamas dentro do Catar — país soberano, aliado dos Estados Unidos e anfitrião da maior base militar americana no Oriente Médio. A Casa Branca, encarnando um misto de diplomata ferido e padrasto condescendente, chama o ataque de “incidente infeliz”, mas “objetivo louvável”. Eis aí, numa frase, a síntese da política internacional contemporânea: o crime é feio, mas a intenção era boa. O mundo assiste perplexo.

Israel tem longa tradição de ações unilaterais, mas fazer isso no quintal de um aliado de Washington eleva a audácia a um patamar inédito. O Catar, país que costuma mediar conflitos, inclusive entre Israel e Hamas, foi tratado como mero cenário. O governo Trump — sim, Trump — foi avisado, mas não se sabe ao certo se houve consentimento formal do Pentágono. A própria porta-voz Karoline Leavitt escolheu palavras cuidadosas, quase poéticas, para minimizar o ato sem parecer conivente. No fundo, os Estados Unidos não querem perder nem o aliado israelense, nem o mediador catariano.

“No fim, o episódio de Doha não é um ponto fora da curva, mas um novo degrau na escada da imprevisibilidade. Israel age como se pudesse fazer justiça com as próprias mãos, os EUA tentam controlar danos e os mediadores regionais perdem prestígio.”

Enquanto isso, o Hamas lamenta a morte de cinco de seus integrantes, mas afirma que nenhum deles fazia parte da delegação negociadora. Para quem buscava uma “eliminação cirúrgica”, a operação acabou parecendo mais um torpedo na própria tentativa de trégua mediada pelos EUA. E, para piorar, um membro das forças de segurança do Catar morreu no ataque. Pequeno detalhe? Para os árabes do Golfo, não: trata-se de um insulto público que ecoa nos corredores de Doha e nas redes sociais, onde o ressentimento contra Israel ganha novo fôlego.

Esse episódio expõe a erosão do chamado “tabuleiro” do Oriente Médio. Israel age de forma cada vez mais independente, sem medo de atravessar fronteiras políticas e geográficas. O Hamas continua a usar sua estratégia de guerrilha e propaganda, enquanto o Catar tenta manter o status de mediador. Mas, agora, todos os atores parecem presos em um dilema: se a cada passo dado em direção à paz há um míssil à espreita, o que sobra de credibilidade para negociações?

A diplomacia no fio da navalha

Se olharmos para a história recente, não é de hoje que Israel opera sem pedir licença. O ataque ao reator nuclear iraquiano em 1981, as incursões na Síria para atingir alvos do Hezbollah, a perseguição de cientistas iranianos fora do Irã — tudo faz parte de um roteiro já conhecido. A novidade é a ousadia de fazer isso em território de um aliado estratégico dos EUA, durante negociações em andamento. É como se Israel estivesse dizendo: “Nós decidimos, vocês lidam com as consequências”.

Trump, por sua vez, tenta equilibrar pratos. Liga para Netanyahu, liga para o emir do Catar, promete que não vai acontecer de novo. Parece aquele pai que repreende o filho bagunceiro na frente do vizinho, mas depois leva para tomar sorvete. A mensagem implícita é clara: “Israel é nosso menino-prodígio. Ele exagera, mas é para o bem de todos”. No entanto, esse tipo de paternalismo tem prazo de validade. Cada nova ação unilateral enfraquece a posição americana como árbitro.

O problema é que a política externa dos EUA, em especial no Oriente Médio, opera numa lógica de alianças assimétricas. Israel recebe apoio militar e diplomático praticamente incondicional, enquanto países árabes precisam provar continuamente seu “valor estratégico”. Quando um aliado árabe como o Catar é publicamente humilhado, abre-se espaço para Rússia, China ou Irã surgirem como alternativas menos moralistas e mais pragmáticas. Em geopolítica, vácuo não dura.

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Para Israel, porém, a equação é outra. O governo Netanyahu — hábil em usar a retórica de autodefesa — sabe que dificilmente sofrerá retaliação direta dos EUA. Além disso, o clima interno em Israel favorece ações ousadas: parte do eleitorado vê essas operações como prova de força e segurança nacional. Nesse contexto, bombardear o Hamas em Doha não é apenas um ato militar: é também uma mensagem política interna e externa.

E o que sobra para o Catar? A posição de mediador, tão arduamente construída, fica manchada. A morte de um agente de segurança não é detalhe irrelevante; é sinal de que nem mesmo uma nação amiga está a salvo. Para os países do Golfo, isso é um alerta. Para a opinião pública árabe, é combustível para a narrativa de que Israel age sem limites e sem consequências.

No fim, o episódio de Doha não é um ponto fora da curva, mas um novo degrau na escada da imprevisibilidade. Israel age como se pudesse fazer justiça com as próprias mãos, os EUA tentam controlar danos e os mediadores regionais perdem prestígio. O resultado? Um Oriente Médio mais fragmentado, mais cínico e menos disposto a acreditar em promessas de paz.

Em termos de imagem internacional, “Israel sem limites” pode ser um slogan perigoso. Quando um país, mesmo aliado, ignora fronteiras e protocolos diplomáticos, normaliza-se um tipo de ação que mina todo o sistema internacional. Hoje é no Catar, amanhã pode ser em qualquer lugar onde o Hamas, o Hezbollah ou outro inimigo esteja reunido. A pergunta “e agora?” não é só retórica: é um desafio real para a estabilidade da região.

“Israel sem limites” pode ser um slogan bastante perigoso na regição (Foto: Reprodução)
“Israel sem limites” pode ser um slogan bastante perigoso na região (Foto: Reprodução)

Se o ataque tinha o objetivo de enfraquecer o Hamas, acabou reforçando seu discurso de vitimização. Se pretendia pressionar o Catar a adotar postura mais dura, acabou isolando ainda mais Israel. E se buscava mostrar poder, também mostrou vulnerabilidade: afinal, se até aliados próximos reagem com desconforto, o que dirá os adversários declarados?

No fim do dia, a impressão é de um roteiro mal escrito, onde cada personagem improvisa falas para uma plateia cansada. Mas, no Oriente Médio, improvisos custam vidas. E, enquanto a comunidade internacional debate se a intenção era “louvável” ou “infeliz”, o fato concreto permanece: mísseis não têm diplomacia; apenas alvo.


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