Tempos Modernos: o feeling de Chaplin
Charlie Chaplin, com sua cartola desalinhada, bigode de tirinha e aquela coreografia involuntária do corpo contra as máquinas, parecia enxergar o futuro com a precisão de um profeta acidental. Tempos Modernos não é apenas um filme; é um espelho — talvez rachado, talvez sujo de graxa fabril — que insiste em refletir a alma de uma sociedade mecanizada. O clássico de 1936, que muitos tomam como cápsula histórica do fordismo, retorna ciclicamente ao debate porque continua dizendo aquilo que ainda fingimos não ouvir: que o progresso, tão exaltado em discursos e planilhas, às vezes pisa nos calos humanos com sapatos de ferro. Não deixa de ser irônico: a obra nasceu à beira da era sonora, mas optou majoritariamente pelo silêncio — silêncio que hoje ressoa mais alto do que qualquer trilha corporativa de “inovação”.
Chaplin, mestre da pantomima, transforma a fábrica numa espécie de coreto industrial, em que o trabalhador é apenas mais um parafuso. A famosa cena da linha de montagem — o operário reduzido ao automatismo convulsivo dos gestos repetitivos — cristaliza a pergunta central do filme: onde termina o homem e começa a engrenagem? No século XXI, com Inteligência Artificial, aplicativos vigilantes e microtarefas fragmentadas em tempo real, a pergunta ganha novos dentes. O “homem parafuso” evoluiu para o “homem notificação”: vive na cadência do alerta sonoro, sempre à beira de um bug existencial.
“O Vagabundo continua acreditando na dignidade possível mesmo quando tudo parece desabar, e isso, aos olhos de 2025, pode soar quase como um filtro sépia aplicado sobre uma realidade muito mais suja. Não é que Chaplin não enxergasse a crueldade do mundo do trabalho — ele via, e bem.”
Ao rever Tempos Modernos, percebe-se um charme estranho, quase anacrônico, mas útil. Chaplin não esconde o humor físico, o pastelão elegante, as quedas coreografadas na lógica do absurdo mecânico. Porém, por trás da comédia de tropeços, há uma filosofia severa: o riso serve para não gritar. E talvez seja precisamente esse mecanismo — rir para não ruir — que mantém a obra tão atual. A pressão dos algoritmos contemporâneos, que monitoram produtividade e humor corporativo com a suavidade de um supervisor de guarda-chuva de aço, não está tão distante do espírito crítico do filme. Troque a esteira de fábrica por dashboards motivacionais e a metáfora continua funcionando.
O filme, contudo, não é perfeito. Talvez o que hoje se perceba como “visão descolorida” seja justamente o romantismo chapliniano diante da precariedade. O Vagabundo continua acreditando na dignidade possível mesmo quando tudo parece desabar, e isso, aos olhos de 2025, pode soar quase como um filtro sépia aplicado sobre uma realidade muito mais suja. Não é que Chaplin não enxergasse a crueldade do mundo do trabalho — ele via, e bem. Mas seu otimismo melódico às vezes nos parece suave demais para um planeta em que trabalhadores viraram códigos de autenticação e pacotes de dados comercializáveis.
Entre engrenagens, afetos e controvérsias
Ainda assim, é impossível negar a força do filme como crítica social. Chaplin, sempre desconfiado das grandes narrativas industriais, desconstrói a ideia de que a modernidade é sinônimo de bem-estar. Ele expõe um sistema que transforma necessidades humanas em ruídos estatísticos. A figura da Gamine (Paulette Goddard), fugindo da fome e da polícia com a mesma agilidade, adiciona à obra uma camada de crítica à desigualdade que persiste — e que hoje se multiplica em versões digitais, de entregadores exaustos a freelancers invisíveis orbitando aplicativos que prometem liberdade, mas entregam instabilidade.
A sequência em que Chaplin fica preso nas engrenagens é o ápice iconográfico, uma síntese visual que, se fosse lançada hoje, seria capturada em memes e hashtags pseudo-revolucionárias. É a imagem do corpo triturado pela lógica da produção. Em vez de dentes metálicos, temos agora fluxos de dados, metas semanais, avaliações compulsórias, reuniões eternas e um léxico corporativo que transforma pessoas em “recursos visando entregas de impacto”. Chaplin denunciava a mecanização. Agora, encaramos a digitalização do cansaço.
E no entanto, Tempos Modernos termina com esperança — aquela famosa caminhada pela estrada, lado a lado, como quem diz: “Vamos em frente, mesmo que o mundo tenha enlouquecido”. Curiosamente, essa esperança, vista à distância histórica, revela-se a parte mais desconfortável do filme. Não por ser ingênua, mas por ser corajosa demais. É um otimismo que parece deslocado num tempo saturado de cinismo, mas que faz falta. Se Chaplin tivesse feito seu filme hoje, talvez o Vagabundo encontrasse emprego como entregador de comida por aplicativo, tropeçasse com drones e, ainda assim, sorrisse para a câmera. Seria trágico, sim; mas também profundamente chapliniano.

No balanço final, Tempos Modernos segue indispensável. É um lembrete de que a modernidade pode ser brilhante na superfície e perigosa nas costuras. Chaplin não oferece respostas definitivas — oferece metáforas precisas, humor afiado e uma humanidade que resiste mesmo quando o mundo tenta achatá-la. A visão “descolorida” do clássico não é desbotada: é um aviso pintado em preto e branco para nos lembrar que as cores da vida dependem menos das máquinas e mais da coragem de quem ainda insiste em caminhar, mesmo que aos tropeços, rumo a algum futuro possível.
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