A globalização e os hábitos alimentares
Vivemos num mundo onde é possível tomar café da manhã com waffles americanos, almoçar sushi japonês e jantar pizza italiana — tudo isso sem sair de uma única cidade. Essa é uma das faces mais visíveis da globalização: a circulação internacional de bens, pessoas e ideias, que inclui também o que comemos. Se, por um lado, essa troca multicultural trouxe novas experiências e expandiu o repertório alimentar de milhões, por outro, provocou distorções preocupantes nos hábitos alimentares de diversas populações. A padronização dos gostos, a ascensão da “comida ultraprocessada global” e a descaracterização das dietas tradicionais são alguns dos efeitos colaterais desse fenômeno.
Desde a virada do século XX para o XXI, empresas multinacionais de alimentos e bebidas ganharam protagonismo planetário. Com estratégias agressivas de marketing, cadeia logística eficiente e forte capacidade de adaptação às culturas locais, gigantes como Coca-Cola, Nestlé, McDonald’s e PepsiCo conseguiram penetrar até os mercados mais remotos. Em questão de décadas, marcas globais tornaram-se parte do cotidiano alimentar em países nos quais, até pouco tempo atrás, prevaleciam dietas locais baseadas em produtos sazonais, naturais e pouco processados.
“O avanço tecnológico, inclusive com o uso de Inteligência Artificial em receitas, nutrição personalizada e cultivo de alimentos, poderá servir tanto à massificação quanto à personalização saudável.”
Essa mudança foi vendida — e muitas vezes percebida — como símbolo de progresso. A chegada de cadeias internacionais de fast food era associada à modernidade, à conveniência e até a um certo prestígio social. O consumo de produtos industrializados era (e ainda é, em muitos lugares) sinal de inserção na economia de mercado e acesso ao estilo de vida ocidental. No entanto, o custo desse “avanço” tem se revelado alto para a saúde pública e para a cultura alimentar.
Tomemos o exemplo do Brasil: durante grande parte do século XX, a base alimentar da maioria da população era composta por arroz, feijão, legumes, verduras e alguma proteína animal. Uma dieta simples, mas equilibrada e culturalmente enraizada. A partir dos anos 1990, no entanto, com a abertura econômica e a consolidação da globalização, os supermercados passaram a oferecer uma enxurrada de produtos industrializados e ultraprocessados — biscoitos recheados, refrigerantes, salgadinhos, comidas prontas. O fenômeno não foi exclusivo do Brasil: aconteceu em todo o mundo em desenvolvimento, da América Latina ao Sudeste Asiático.
Do arroz com feijão ao nugget global: o que se perdeu no caminho
O impacto foi imediato. O tempo de preparo das refeições caiu; a frequência de refeições em família também. Comer virou, cada vez mais, um ato solitário, rápido e, muitas vezes, automático. E a saúde pública sofreu as consequências. A obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis (como diabetes tipo 2 e hipertensão) dispararam. Segundo dados da OMS atualizados em 2025, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo estão acima do peso — e as taxas mais alarmantes não estão nos países ricos, mas nos de renda média e baixa.
Além das questões de saúde, há também uma perda simbólica e cultural. A alimentação é uma forma de memória coletiva. Pratos típicos, modos de preparo, ingredientes locais — tudo isso compõe o patrimônio imaterial de uma sociedade. Com a uniformização dos gostos, muitos desses elementos estão desaparecendo. Jovens em cidades grandes muitas vezes conhecem mais sabores artificiais de franquias do que receitas da própria avó. Em algumas regiões da África e da América Latina, cultivos tradicionais estão sendo abandonados em favor de commodities globais — soja, milho, trigo — que alimentam cadeias industriais, não pessoas.
Naturalmente, a globalização também trouxe benefícios. O acesso a alimentos de diferentes partes do mundo, a disseminação de técnicas culinárias, o intercâmbio de ingredientes e sabores: tudo isso enriqueceu o universo gastronômico. Hoje é possível cozinhar com especiarias indianas, ervas italianas e grãos andinos sem sair de casa. Mas, ao mesmo tempo, essa abundância aparente esconde uma crescente dependência de poucos conglomerados internacionais e uma homogeneização dos paladares.
Diante disso, governos, entidades de saúde e movimentos sociais têm buscado reagir. Incentivos à agricultura familiar, taxação de bebidas açucaradas, campanhas por alimentação saudável nas escolas e até a valorização das cozinhas regionais são estratégias que tentam reverter parte dos efeitos nocivos da globalização alimentar. No entanto, a força econômica das corporações e o apelo do consumo rápido ainda são desafios imensos.

Mais recentemente, nota-se uma virada interessante: com o crescimento da consciência ambiental, há uma busca crescente por alimentos mais sustentáveis, locais e orgânicos. Pequenas redes de produção e consumo, como feiras agroecológicas, cooperativas e iniciativas de comida de verdade, têm ganhado espaço, especialmente entre jovens. O avanço tecnológico, inclusive com o uso de Inteligência Artificial em receitas, nutrição personalizada e cultivo de alimentos, poderá servir tanto à massificação quanto à personalização saudável. O rumo dependerá de decisões políticas e escolhas coletivas.
Talvez a grande questão que a retumbante globalização nos deixou no campo da alimentação seja esta: queremos liberdade para escolher o que comemos, ou apenas achamos que estamos escolhendo, enquanto seguimos um cardápio padronizado e imposto por interesses comerciais? A resposta continua sendo digerida.
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