Acabou Chorare: o álbum nº 1 do Brasil?
Se existe um disco que consegue ser ao mesmo tempo, raiz e experimentação, tradição e rebeldia, esse é Acabou Chorare, dos Novos Baianos. Lançado em 1972, ele atravessou décadas sem perder o frescor de quem ainda busca redefinir o que entendemos por música brasileira. Misturando samba, choro, baião, rock e uma pitada de psicodelia tropical, o álbum é menos um conjunto de faixas do que um manifesto: a vida como festa, a política como poesia, o cotidiano transformado em música. É, sem exageros, uma experiência sensorial que desafia rótulos, estilos e até a paciência de quem insiste em classificar tudo em prateleiras de gêneros.
O fato de Acabou Chorare ter sido eleito, em 2007, o número 1 entre os 100 maiores discos da música brasileira pela Rolling Stone Brasil não surpreende quem já se perdeu em suas melodias e harmonias. Essa eleição, conduzida por jornalistas, produtores e estudiosos, reforçou o lugar do disco como obra-prima, mas também acendeu debates inevitáveis: afinal, qual critério define um álbum como “o melhor?” Popularidade, inovação, influência histórica ou, simplesmente, a magia inexplicável de certos encontros musicais? No caso de Acabou Chorare, todos esses fatores convergem, mas é a sensação de intemporalidade que realmente o eleva.
“O paradoxo do álbum é fascinante: ele é cultuado pelos especialistas e, ao mesmo tempo, acessível ao público geral. Enquanto estudiosos analisam arranjos de metais, improvisações e harmonias, o ouvinte comum se perde nas melodias dançantes, nos refrões que grudam e na sensação de festa coletiva que o disco provoca.”
O disco é uma aula de convivência sonora: cada músico parece dialogar com o outro sem precisar de microfones ou partituras. Moraes Moreira, Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão e companhia criaram algo que transcende a soma de suas partes. Faixas como “Preta, Pretinha” ou “Besta é Tu” não são apenas canções; são declarações de amor ao caos cotidiano, ao Brasil visto de dentro, com todos os barulhos da rua, cheiro de comida e risadas contagiantes que só se encontram em certos lugares e tempos.
Ou seja: ouvir Acabou Chorare é se sentar em um sofá com o Brasil inteiro — mas sem nenhum controle remoto para escapar da experiência.
Entre o culto e o popular: o paradoxo do clássico
O paradoxo do álbum é fascinante: ele é cultuado pelos especialistas e, ao mesmo tempo, acessível ao público geral. Enquanto estudiosos analisam arranjos de metais, improvisações e harmonias, o ouvinte comum se perde nas melodias dançantes, nos refrões que grudam e na sensação de festa coletiva que o disco provoca. Essa dupla face é rara. Poucos álbuns conseguem se manter eruditos e populares, políticos e divertidos, experimentais e acolhedores, tudo ao mesmo tempo. Acabou Chorare não apenas consegue: ele parece se divertir com essa multiplicidade, provocando críticas e elogios na mesma medida.
É tentador ironizar e afirmar que a música brasileira atingiu o ápice com esse disco, mas isso seria simplificação demais. Afinal, o Brasil é vasto, contraditório, muitas vezes injusto com seus talentos, e ainda produz sons incríveis que jamais poderiam ser resumidos a uma única obra. Contudo, reconhecer Acabou Chorare como número 1 da lista da Rolling Stone Brasil não é um elogio meramente simbólico: é um reconhecimento de sua influência inegável, de sua capacidade de atravessar gerações e de seu jeito único de transformar tristeza em celebração.
O álbum também lança uma provocação silenciosa ao mercado musical contemporâneo. Em tempos de singles instantâneos, playlists infinitas e hits descartáveis, ouvir um disco como Acabou Chorare é um lembrete de que música não precisa ser imediata para ser impactante. Cada faixa é cuidadosamente tecida, mas parece nascer espontaneamente, como se a criação musical fosse parte do cotidiano, não um produto finalizado para consumo rápido. Talvez seja por isso que ainda hoje ele pareça moderno e desafiador, mesmo depois de mais de cinco décadas.
Acima de tudo, Acabou Chorare é um convite: para dançar, refletir, rir, chorar e, eventualmente, questionar o próprio conceito de “melhor disco”. Ao mesmo tempo, ele reforça a importância da coletividade na música — algo que o mundo digital parece muitas vezes ignorar em prol de vozes solitárias e algoritmos preditivos. Nesse sentido, o álbum é não apenas um clássico, mas um lembrete de que a música brasileira pode ser revolucionária sem perder a leveza, profunda sem ser pedante, provocativa sem ser ofensiva.

Dizer que Acabou Chorare é o álbum número 1 do Brasil não é apenas uma questão de votação ou estatística: é uma constatação quase intuitiva, baseada naquilo que vai além de cifras e prêmios. É sobre como a música nos conecta ao tempo, ao espaço e uns aos outros. É sobre como uma obra pode ser tão complexa quanto simples, tão erudita quanto popular, tão política quanto festiva. Talvez não exista um disco “perfeito” — mas, se houvesse, Acabou Chorare certamente estaria na lista de candidatos, com seu sorriso largo, seu samba no pé e aquela sensação única de que, depois dele, nada será exatamente igual.
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