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As ligações do velho e novo cangaço

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O Brasil tem um talento curioso para reciclar velharias em embalagem nova. Basta olhar para o fenômeno que chamamos de “novo cangaço”. O termo, carregado de dramaticidade, evoca memórias de Lampião, Maria Bonita e de um Nordeste marcado por secas, coronéis e uma violência que se confundia com sobrevivência. Mas, ao contrário do mito do “rei do cangaço”, que ainda rende cordéis, filmes e teses universitárias, o “novo cangaço” troca a caatinga pelas estradas asfaltadas e os punhais pelas metralhadoras de calibre grosso. A essência, no entanto, continua a mesma: o ataque frontal ao Estado e suas instituições, com pitadas de espetáculo e brutalidade.

Enquanto Lampião usava sua audácia para desafiar volantes e coronéis, os bandos de hoje miram diretamente no sistema financeiro. Assaltos cinematográficos a bancos em cidades pequenas, explosões de caixas eletrônicos, fugas dignas de roteiro hollywoodiano — tudo isso constrói a mística de um crime que carrega a palavra “cangaço”, mas está mais perto da logística de facções modernas do que das emboscadas de sertanejos maltrapilhos. A comparação, porém, não é gratuita: ambos exploram os buracos do Estado, seja a ausência de segurança pública nos sertões de ontem ou a vulnerabilidade das cidades interioranas de hoje.

“Se ontem a caatinga paria bandoleiros, hoje as periferias e pequenos municípios geram especialistas em assaltos cinematográficos.”

Há, ainda, a dimensão simbólica. O velho cangaço floresceu como resposta ao abandono, às injustiças sociais e à concentração de poder nas mãos de poucos. Já o novo cangaço não tem o mesmo verniz de resistência, embora alguns romantizem sua ousadia contra bancos. Mas é preciso dizer: não há heroísmo em explodir agências e deixar reféns em pânico. O que existe é organização criminosa travestida de espetáculo midiático, aproveitando-se da mesma fragilidade que Lampião explorava — o atraso estrutural.

Se o passado produziu lendas e uma estética própria — chapéus de couro, rifle na mão e sanfona ao fundo —, o presente produz imagens de homens encapuzados, fortemente armados e escoltados por drones. Mudou a indumentária, mudou a ferramenta, mas não mudou a lógica de parasitar o medo. O velho cangaço deixou cicatrizes na memória popular; o novo deixa crateras de explosivos no asfalto das pequenas cidades.

Da memória ao espetáculo da violência

É curioso como o Brasil se deixa seduzir por esses paralelos históricos. O velho cangaço, com toda a sua brutalidade, foi incorporado como folclore: músicas exaltam Lampião, peças teatrais revisitam Maria Bonita, e até roteiros turísticos celebram os rastros do bando. Já o novo cangaço ainda não ganhou esse lugar na imaginação cultural — e nem deve. O que vemos é a espetacularização do crime em tempo real, transmitido por celulares e noticiários que quase tratam cada assalto como episódio de uma série de ação.

Nesse sentido, o velho e o novo se encontram. Ambos alimentam a fantasia coletiva: ontem, a figura do justiceiro que enfrentava coronéis; hoje, o mito do “superbando” que desafia bancos poderosos. No fundo, é a mesma pulsão narrativa de um país que prefere vestir o crime com aura mítica a enfrentar suas causas estruturais.

O novo cangaço é filho legítimo da desigualdade, da falta de oportunidades e do sucateamento da segurança pública. Ele não surge do nada, assim como Lampião não nasceu apenas da própria violência. É produto de um Estado que falha sistematicamente em oferecer proteção, dignidade e futuro às suas populações mais vulneráveis. Se ontem a caatinga paria bandoleiros, hoje as periferias e pequenos municípios geram especialistas em assaltos cinematográficos.

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É aí que mora a provocação: será que o “novo” cangaço é mesmo novo? Ou apenas o velho Brasil de sempre, reinventando sua face criminosa conforme as ferramentas disponíveis? Se antes o cavalo servia para a fuga, hoje é a caminhonete blindada; se antes a emboscada se armava com bacamartes, agora são granadas e fuzis importados. A coreografia muda, mas o enredo é o mesmo: a dança do crime em cima do vácuo estatal.

No fim das contas, a comparação com Lampião só faz sentido para expor a persistência de um país que não rompe com seus ciclos. O cangaço velho virou memória folclórica; o novo é sintoma doloroso de um presente ainda incapaz de se reinventar. Entre balas e explosivos, o Brasil assiste, mais uma vez, à encenação de sua própria tragédia grega: um espetáculo que mistura pólvora, desigualdade e descaso — com ingresso gratuito, mas custo social altíssimo.

O Brasil assiste, mais uma vez, à encenação de sua própria tragédia grega (Foto: Wiki)
O Brasil assiste, mais uma vez, à encenação de sua própria tragédia grega (Foto: Wiki)

Quer saber a ironia maior? No futuro, talvez façamos cordéis sobre os assaltos do “novo cangaço”, como hoje fazemos sobre Lampião. Porque se tem algo que o Brasil sabe fazer bem é transformar cicatriz em mito — e ferida em atração cultural. Até lá, seguimos convivendo com a versão em 4K de um problema que nunca saiu de cartaz.


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