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Bora-Bora: Herbert e Paula espelhados

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Quando “Bora-Bora” chegou às prateleiras em 1988, o Brasil vivia uma ressaca cultural pós-ditadura. A MPB passava por metamorfoses, o rock brasileiro buscava identidade, e os Paralamas do Sucesso, liderados por Herbert Vianna, davam um salto artístico que misturava catarse pessoal e experimentação sonora. O quarto álbum do trio não é apenas um disco: é um ponto de inflexão na trajetória da banda. Ao contrário do que os refrões ensolarados do lado A poderiam sugerir, há ali um coração pulsante de melancolia, especialmente no lado B, reflexo direto do fim do romance entre Herbert e Paula Toller.

“Bora-Bora” funciona quase como um retrato de duas metades de uma mesma alma. O lado A, mais dançante e aberto, é herdeiro de “Selvagem?” e do clima de pluralidade musical que tomava conta do fim dos anos 80. Já o lado B, debruçado em letras mais íntimas e arranjos menos óbvios, escancara o drama pessoal. É o típico álbum em que a vida privada do artista se infiltra sem pedir licença no estúdio, transformando cada canção em um mosaico emocional. Essa característica dá ao disco uma densidade raramente percebida no rock brasileiro mainstream daquele período.

“Em retrospecto, é tentador enxergar “Bora-Bora” como um ponto de convergência: a dor pessoal de Herbert, o talento coletivo dos Paralamas, a maturidade do rock nacional e a ousadia de experimentar. Ao revisitar esse disco hoje, entendemos não só a história de um relacionamento, mas de uma cena musical inteira tentando se reinventar.”

O contexto não é trivial. Até “Bora-Bora”, os Paralamas vinham de álbuns que, embora inovadores, seguiam uma produção mais tradicional. Pela primeira vez, decidiram produzir o próprio trabalho — uma ousadia que, vista retrospectivamente, funciona como declaração de independência estética. A entrada definitiva dos sopros marca não só uma evolução sonora, mas uma vontade de romper a camisa de força do rock básico. Trompetes e saxofones emergem como protagonistas, quase personagens secundários que comentam a trama emocional do disco.

É impossível falar de “Bora-Bora” sem citar seus sucessos. “O Beco” traz um groove urbano irresistível; “Quase um Segundo” é um dos momentos mais confessionais da banda, com a dor e a saudade transfiguradas em melodia; “Uns Dias” e “Dois Elefantes” reforçam a ambição de misturar pop, rock e reggae com uma brasilidade nada caricata. “Um a Um” e “Fundo do Coração” completam o cardápio com variações rítmicas e emocionais que tornam o álbum quase cinematográfico. O resultado: cerca de 200 mil cópias vendidas, um marco para um disco que não se dobrava às fórmulas fáceis.

Entre o hedonismo tropical e a confissão íntima

O título “Bora-Bora” evoca uma paisagem paradisíaca, quase um cartão-postal do Pacífico. Mas a ironia é óbvia: por trás da suposta leveza, há um artista lidando com separações, fraturas e novas ambições criativas. A dualidade hedonismo versus introspecção é o eixo que sustenta o disco. De um lado, a banda acena ao público com arranjos expansivos e refrões que poderiam tocar em qualquer rádio FM; de outro, Herbert deixa escapar um diário íntimo embalado por guitarras e sopros. É essa tensão que torna o álbum atemporal.

Para além do contexto biográfico, “Bora-Bora” também serve de documento sobre a maturidade do rock brasileiro no final dos anos 80. Até então, o gênero tinha uma aura juvenil, contestatória ou caricatural. Os Paralamas, ao investir em camadas sonoras complexas e temas adultos, ajudaram a empurrar a cena para um lugar mais ambicioso. Não se trata de um disco perfeito — algumas faixas parecem experimentar demais, correndo o risco de soar datadas — mas o saldo é uma obra que envelheceu com dignidade e que continua inspirando leituras múltiplas.

No campo técnico, a produção própria deu à banda liberdade para brincar com texturas e volumes, algo evidente na maneira como os sopros se entrelaçam com guitarras e teclados. Esse passo não apenas consolidou o som “paralamístico” como abriu caminho para experimentos mais ousados no álbum seguinte. E se hoje a fusão de gêneros é regra, em 1988 ainda era preciso coragem para abandonar a zona de conforto.

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Há também um aspecto simbólico em “Bora-Bora”: ele demonstra como a vulnerabilidade pode ser força criativa. Herbert não esconde seu luto afetivo; ele o transforma em arte, canalizando a ruptura pessoal para dentro da coletividade da banda. Em tempos de redes sociais e superexposição, essa postura parece quase profética: transformar dor privada em linguagem pública, mas com refinamento estético.

Por fim, “Bora-Bora” é um disco que desafia a pressa e o consumo descartável. Exige do ouvinte uma escuta que vá além do refrão e da batida inicial, pedindo atenção às camadas, aos sopros, às letras. Ao mesmo tempo, entrega canções pop capazes de sobreviver ao teste do tempo. É um álbum de transição, mas também de afirmação — um documento de como o rock brasileiro podia dialogar com reggae, ska, soul e MPB sem perder identidade.

Em retrospecto, é tentador enxergar “Bora-Bora” como um ponto de convergência: a dor pessoal de Herbert, o talento coletivo dos Paralamas, a maturidade do rock nacional e a ousadia de experimentar. Ao revisitar esse disco hoje, entendemos não só a história de um relacionamento, mas de uma cena musical inteira tentando se reinventar. Talvez seja essa a maior virtude do álbum: ele não se contenta em ser uma lembrança dos anos 80; ele ecoa como um testemunho das possibilidades infinitas de quando artistas decidem romper seus próprios limites.

“Bora-Bora” funciona como um retrato de duas metades de uma alma (Foto: enjoei)
“Bora-Bora” funciona como um retrato de duas metades de uma alma (Foto: enjoei)

No fim das contas, “Bora-Bora” não é apenas um álbum. É um rito de passagem. Para Herbert, para Paula — ainda que de modo indireto — e para o público brasileiro que começava a amadurecer sua escuta musical. Ao ouvi-lo hoje, percebemos que por trás das praias cristalinas do título existe um arquipélago de sentimentos, todos navegando entre o otimismo pop e a melancolia mais íntima. Um retrato de época que continua a refletir, como um espelho d’água, as contradições e as potências da música popular brasileira.


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