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Dom Casmurro: pouco lido, muito falado

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Há livros que ocupam o imaginário coletivo mais pela fama do que pela leitura efetiva. “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, é um desses monumentos literários que se tornou referência obrigatória em qualquer roda de conversa cultural, mas que poucos têm a paciência (ou a coragem) de enfrentar da primeira à última página. Fala-se mais de Capitu do que se lê Capitu. Julga-se Bentinho com fervor de tribunal popular, mas raramente se compreende o narrador enviesado que Machado nos oferece. É o destino cruel — e ao mesmo tempo glorioso — de um clássico: virar mito antes de virar leitura.

O romance, publicado em 1899, atravessou mais de um século sob a sombra da famosa dúvida: Capitu traiu ou não traiu? A questão, talvez a mais persistente da literatura brasileira, é repetida ad nauseam em escolas, universidades e até em mesas de bar. Ironia machadiana: o próprio autor jamais dá uma resposta definitiva, deixando para o leitor a tarefa de se perder em suspeitas, como quem olha uma pintura impressionista de perto, vendo apenas borrões. Mas quem tem tempo — ou vontade — de se perder em sutilezas? O brasileiro médio prefere o atalho: transformar a obra num “caso de fofoca literária”, como se fosse a edição oitocentista de um tabloide.

“No fim das contas, isso não diminui sua importância. Pelo contrário, prova sua força. Um livro que atravessa séculos gerando debates, dúvidas e paixões, mesmo sem ser lido em massa, é um triunfo literário.”

Machado, porém, estava muito além de novelas sentimentais. Seu Bentinho é narrador e personagem, juiz e réu, fiador e sabotador de sua própria história. O jogo psicológico que ele constrói — com ironias, pausas, capítulos curtos e reflexões que mais parecem armadilhas — exige um leitor ativo, desconfiado, capaz de perceber que a obra não se resume a uma “questão de adultério”. Ler “Dom Casmurro” é entrar num labirinto literário onde cada porta leva a mais dúvidas, não a respostas. O problema é que boa parte dos leitores contemporâneos, treinados na velocidade das redes sociais, se desespera diante de um texto que exige tempo, atenção e um tanto de malícia.

E aqui chegamos ao paradoxo central: “Dom Casmurro” é mais comentado do que lido. Tornou-se símbolo da cultura literária brasileira, mas seu prestígio repousa em segunda mão — professores, críticos, resumos escolares, adaptações e memes. É um livro que todo mundo “conhece”, mas poucos têm relação direta com ele.

O mito de Capitu e o tribunal popular

Capitu, a famosa menina dos “olhos de ressaca”, virou personagem de julgamento eterno. O Brasil parece fascinado em discutir sua suposta traição como quem comenta a vida amorosa de celebridades. É como se a maior realização de Machado fosse ter criado a primeira “influencer literária” da história. E, no entanto, o que muitos não percebem é que essa dúvida interminável é menos sobre Capitu e mais sobre Bentinho: sua insegurança, seu ciúme, sua necessidade de controle. A pergunta que deveríamos fazer não é “Capitu traiu?”, mas “Bentinho é confiável?”.

Esse deslocamento de perspectiva, claro, desmonta o senso comum. Obriga-nos a admitir que o narrador pode ser falho, ressentido, talvez até delirante. Mas quem gosta de desconstruir mitos? É mais simples manter o eterno julgamento de Capitu, como se fosse um reality show do século XIX. A preguiça intelectual transforma a obra em fofoca imortal.

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Há também o uso político e social que se faz de “Dom Casmurro”. Já foi citado para discutir feminismo, ciúme, casamento, patriarcado, confiança. Capitu virou símbolo da mulher injustiçada por uma sociedade misógina, mas também é usada como metáfora da ambiguidade humana. A obra se tornou espelho de múltiplas agendas, todas legítimas, mas muitas vezes distantes da leitura literária em si. No fundo, Machado ganha: quanto mais se fala, mais ele permanece vivo.

Entretanto, não deixa de ser curioso que o maior romancista brasileiro seja constantemente lembrado por uma obra que poucos de fato enfrentam. É como se “Dom Casmurro” fosse um clássico de citações, não de leituras. Ele está no pedestal, mas não na cabeceira.

E talvez essa seja a grande ironia machadiana: ter escrito um romance que sobrevive não pela experiência íntima da leitura, mas pelo rumor, pelo mito, pela falação incessante. “Dom Casmurro” é uma obra que se lê também pelo ouvido, pelo que dizem dela, pelo que se repete sobre ela. Um clássico falado, quase oral, à moda brasileira.

No fim das contas, isso não diminui sua importância. Pelo contrário, prova sua força. Um livro que atravessa séculos gerando debates, dúvidas e paixões, mesmo sem ser lido em massa, é um triunfo literário. Machado talvez risse, com sua ironia elegante, ao ver que sua obra virou mais conversa de esquina do que leitura silenciosa. E talvez concluísse, com aquela sobrancelha arqueada, que isso também é literatura: o texto que escapa do papel e se instala no imaginário popular.

“Dom Casmurro” é uma obra que se lê também pelo ouvido (Foto: Aventuras da História)
“Dom Casmurro” é uma obra que se lê também pelo ouvido (Foto: Aventuras da História)

“Dom Casmurro” é pouco lido, mas muito falado — e talvez seja justamente isso que o torna eterno.


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