O Dicionário do Diabo: Bierce ácido
Ambrose Bierce não perdoava. Com sua pena afiada como baioneta, ele fustigava políticos, padres, poetas e plebeus — todos alvejados com o mesmo cinismo impiedoso que fez de O Dicionário do Diabo uma obra única, desconfortável e, paradoxalmente, deliciosamente engraçada. Publicado originalmente em partes entre 1881 e 1906 e reunido em livro em 1911, o “dicionário” é menos um manual de significados e mais um ataque frontal às pretensões humanas. Bierce não buscava explicar o mundo, mas expor suas farsas com uma ironia tão seca que, se fosse vinho, mataria de sede.
Imagine um Aurélio com azia. Ou um Houaiss bêbado de desencanto. É nesse registro que O Dicionário do Diabo oferece definições como esta para “político”: “uma pessoa que resolve problemas que não existiriam se ele não estivesse no cargo.” Ou para “cérebro”: “um aparelho com que pensamos.” Bierce não está interessado, na verdade, objetiva, mas em uma verdade mais suja, mais dolorosa, talvez mais humana: a de que nossa linguagem é frequentemente um disfarce para nossas ilusões, interesses e hipocrisias.
“Bierce é produto de seu tempo. Em alguns momentos, sua escrita beira o elitismo literário e há um certo prazer sombrio em ver o mundo arder que pode incomodar leitores mais esperançosos.”
Nascido em 1842, veterano da Guerra Civil Americana e jornalista de profissão, Bierce traz para sua escrita uma visão de mundo marcada pelo sangue, pelo absurdo e pela desconfiança. Sua prosa parece ter sido destilada no campo de batalha e engarrafada nos corredores mofados da burocracia. Seus verbetes — cada um uma pequena granada literária — revelam não apenas sua inteligência voraz, mas uma amargura refinada, quase filosófica. Como um Schopenhauer com senso de humor, Bierce caminha entre a sátira e a metafísica, apontando o dedo para os frágeis pilares da civilização.
Mas é claro que nem todo leitor está pronto para esse coquetel de ácido sulfúrico com gin seco. Há quem o acuse de misantropo, de cínico patológico, de autor de um niilismo que beira o gratuito. Talvez. Mas há também algo profundamente libertador em sua linguagem. Ao desmontar a gramática da hipocrisia, Bierce não só diverte — ele limpa. Remove o verniz. Lembra que rir é uma forma de resistência, e que rir da linguagem é rir do poder.
Manual de cinismo elegante
Num mundo em que a linguagem anda mais polida que eficaz, eufemismos escorrem de comunicados corporativos como gordura de fast-food, Bierce retorna como um antídoto bem-vindo. Vivemos tempos de vocabulário inflado e pensamento raso — o que transforma O Dicionário do Diabo em leitura de primeira necessidade. Seu humor negro, que alguns poderiam chamar de humor radioativo, serve como vacina contra o sentimentalismo fácil e o moralismo de vitrine.
Alguns dos verbetes continuam especialmente pertinentes. “Educação”: “o que resta depois que se esqueceu tudo que foi aprendido.” “Comércio”: “jogo no qual ambos os jogadores perdem.” “Justiça”: “artigo mais usado no discurso do que, na prática.” Esses pequenos socos verbais têm mais poder de síntese do que páginas e páginas de teoria crítica. São aforismos que mordem, mas também iluminam. Bierce não quer apenas arrancar risadas — ele quer abrir olhos.
Claro, há limites. Bierce é produto de seu tempo. Em alguns momentos, sua escrita beira o elitismo literário e há um certo prazer sombrio em ver o mundo arder que pode incomodar leitores mais esperançosos. Mas mesmo isso pode ser visto como parte do charme — ou do veneno — da obra. Bierce não é um autor de consolo. É de confronto. Seu humor é bisturi, não band-aid.
E isso o torna ainda mais necessário hoje. Em uma era saturada de positividade tóxica, de autoajuda açucarada e de comunicados neutros, Bierce representa o elogio do pensamento impuro, da piada que dói, da palavra que denuncia. Seu dicionário não pretende ensinar nada. Mas ensina muito. Ensina, por exemplo, que a linguagem é um campo de batalha, que palavras são armas e que o riso, quando bem afiado, pode ser mais eficaz que mil editoriais indignados.
No fim das contas, O Dicionário do Diabo é um espelho distorcido — e, como todo espelho, nos incomoda menos quando reflete os outros. Mas quando a imagem que nos encara de volta somos nós mesmos, aí, sim, a mordida de Bierce revela toda sua potência. E nos perguntamos: será que ele estava tão errado assim?

Provavelmente não. E talvez por isso, mais de um século depois, ainda estamos lendo esse velho mal-humorado com um sorriso nervoso no rosto.
Bora-Bora: Herbert e Paula espelhados
setembro 25, 2025O Jardim das Cerejeiras: sempre encenada
setembro 24, 2025Caminho das Borboletas: fênix Galisteu
setembro 23, 2025A TV 3.0 salvará as emissoras do país?
setembro 22, 2025Leila Lopes: a rotina como um fardo
setembro 20, 2025Nosferatu está vivo, sombrio e ainda pulsante
setembro 19, 2025Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop: improvável
setembro 18, 2025Gargântua ou Dumier batendo no poder
setembro 17, 2025Ilíada: histórica, essencial e dificílima
setembro 16, 2025Revista MAD: o mimimi aniquilou-a?
setembro 15, 2025Chacon e Corona: o HIV no destino
setembro 13, 2025A Paixão de Cristo: hemoglobina pura
setembro 12, 2025
Eder Fonseca é o publisher do Panorama Mercantil. Além de seu conteúdo original, o Panorama Mercantil oferece uma variedade de seções e recursos adicionais para enriquecer a experiência de seus leitores. Desde análises aprofundadas até cobertura de eventos e notícias agregadas de outros veículos em tempo real, o portal continua a fornecer uma visão abrangente e informada do mundo ao redor. Convidamos você a se juntar a nós nesta emocionante jornada informativa.
Facebook Comments