Os famosos sequestros dos anos 90
O Brasil dos anos 1990 tinha uma trilha sonora peculiar: pagode nas rádios, novela das oito com audiência de Copa do Mundo e, no noticiário, o refrão macabro dos sequestros. Quem viveu a época lembra bem: cada capa de jornal trazia um novo cativeiro, uma nova família milionária em pânico, uma nova quadrilha em ascensão. Era o “mercado do medo”, devidamente indexado ao dólar.
Não se tratava apenas de violência difusa, mas de um fenômeno quase industrializado. Grupos criminosos — às vezes formados por ex-policiais, às vezes por jovens que descobriram que sequestrar era mais rentável do que assaltar padarias — organizaram um esquema que misturava pragmatismo financeiro com brutalidade medieval. A moda era sequestrar empresários, filhos de celebridades e, quando dava errado, até um ou outro azarado que simplesmente passava com o carro errado na hora errada.
“O sequestro da família Abravanel, em 2001, foi talvez o auge dessa dramaturgia macabra: a filha Patrícia libertada, e dias depois o próprio Silvio Santos rendido em sua mansão, com direito à presença do então governador Geraldo Alckmin na sala do patrão do SBT.”
Casos como o de Roberto Medina, sequestrado em 1990, ou o de Abilio Diniz, ainda em 1989, não apenas estamparam manchetes: definiram o espírito de uma década. O Brasil, que tentava se vender como país do Plano Real e da modernidade tropical, escondia no porão os horrores de um país que naturalizou a violência. O cativeiro virou metáfora perfeita do nosso pacto social: claustrofóbico, improvisado e sempre sob ameaça.
O curioso é como a memória coletiva seleciona os ícones do terror. O público ainda se lembra do publicitário Washington Olivetto, sequestrado em 2001, mantido 53 dias em cárcere como se fosse o prisioneiro mais midiático do país. Ou de Wellington Camargo, o irmão dos sertanejos Zezé e Luciano, cujo drama atingiu níveis quase bíblicos quando os criminosos decidiram amputar parte de sua orelha. Já os sequestros menos glamourosos — do anônimo trabalhador, da dona de casa que não saiu nos jornais — foram engolidos pelo esquecimento.
Um país sequestrado de si
O ponto mais perturbador é que esses crimes não eram apenas histórias individuais, mas sintomas de um Brasil sem rumo. A elite se trancava em condomínios fortificados, os bancos vendiam carros blindados como quem vende eletrodoméstico, e a classe média passou a olhar cada motoqueiro no retrovisor como um potencial sequestrador. A paranoia virou modo de vida.
A década de 1990 foi, portanto, o laboratório do medo contemporâneo. A polícia reagiu com delegacias especializadas, equipes de inteligência e a famigerada Lei dos Crimes Hediondos, que prometia endurecer penas, mas pouco fez para desmontar a engrenagem social que fabricava criminosos em escala industrial. O problema nunca foi apenas de repressão, mas de desigualdade, corrupção e um sistema carcerário que mais formava pós-graduados em crime do que regenerava infratores.
Enquanto isso, a mídia transformava o horror em espetáculo. Câmeras transmitiam casas cercadas pela polícia, governadores apareciam para negociar ao vivo, e apresentadores de TV faziam da tragédia alheia mais uma novela de audiência. O sequestro da família Abravanel, em 2001, foi talvez o auge dessa dramaturgia macabra: a filha Patrícia libertada, e dias depois o próprio Silvio Santos rendido em sua mansão, com direito à presença do então governador Geraldo Alckmin na sala do patrão do SBT. Era o crime virando programa dominical, com clímax e catarse.
Se hoje, olhamos para trás e estranhamos aquela banalização, é porque aprendemos a terceirizar nossos medos para outras tragédias mais recentes — das milícias digitais à violência difusa das grandes cidades. Mas os anos 90 continuam sendo uma cicatriz aberta: mostraram o quanto o Brasil pode naturalizar o inaceitável quando a violência encontra plateia.

No fundo, aqueles sequestros não falam apenas de vítimas ilustres ou criminosos ousados. Falam de um país inteiro sequestrado por sua desigualdade estrutural, por seu fetiche midiático pelo crime e por uma elite que, mesmo blindada, nunca esteve realmente segura. É por isso que, ironicamente, os sequestros dos anos 90 continuam famosos: não porque eram exceção, mas porque foram o retrato mais cru de uma normalidade doentia.
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Anacleto Colombo assina a seção Não Perca!, onde mergulha sem colete na crônica sombria da criminalidade, da violência urbana, das máfias e dos grandes casos que marcaram a história policial. Com faro apurado, narrativa envolvente e uma queda por detalhes perturbadores, ele revela o lado oculto de um mundo que muitos preferem ignorar. Seus textos combinam rigor investigativo com uma dose de inquietação moral, sempre instigando o leitor a olhar para o abismo — e reconhecer nele parte da nossa sociedade. Em um portal dedicado à informação com profundidade, Anacleto é o repórter que desce até o subsolo. E volta com a história completa.




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