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Piss Christ: arte, heresia ou marketing?

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Andres Serrano, fotógrafo americano nascido em 1950, conseguiu o que poucos artistas ousam — ou têm a sorte de conquistar —: transformar uma obra em polêmica perene. Em 1987, ele mergulhou um crucifixo de plástico em um copo de sua própria urina, iluminou a cena com um jogo de luz quase sacro e clicou a fotografia que ficaria conhecida como Piss Christ. O título dispensa sutilezas. A peça, exposta em galerias e museus mundo afora, virou combustível para debates que atravessam décadas: seria arte, blasfêmia ou apenas autopromoção calculada?

O fim dos anos 80 não foi um período inocente. O moralismo religioso ainda disputava espaço com uma cena cultural sedenta por provocações, e Serrano soube como ninguém operar essa fricção. Não se trata de ingenuidade estética: o enquadramento é cuidadoso, as cores dialogam com a tradição pictórica do barroco, a aura quase mística do dourado remete a um ícone bizantino. Mas, claro, o detalhe nada discreto do líquido amarelado dá o choque que transforma a imagem em manchete, chamando a imprensa e os fiéis indignados para a roda. Serrano encontrou o atalho para a fama: provocar com um verniz de transcendência.

“A iconoclastia já não assusta como antes, e o público contemporâneo, acostumado a performances ainda mais radicais, talvez ache o gesto de Serrano até modesto.”

O curioso é perceber como, quase quarenta anos depois, Piss Christ continua sendo pauta. Isso diz muito menos sobre a genialidade de Serrano e muito mais sobre a nossa dificuldade em lidar com símbolos religiosos na esfera pública. Há quem veja sacrilégio, há quem enxergue denúncia do consumo kitsch de objetos sagrados, há quem perceba apenas um golpe de marketing. Serrano, astuto, jamais ofereceu uma interpretação definitiva. Como todo bom jogador no mercado da arte, deixou a polêmica falar mais alto do que o próprio trabalho. Afinal, o silêncio calculado do artista é a melhor forma de manter o fogo aceso.

O impacto de Piss Christ também revela o poder da arte financiada por instituições. A obra, exposta em galerias que contaram com apoio de fundos públicos, foi alvo de políticos americanos que, indignados, tentaram cortar verbas para as artes visuais. O debate extrapolou a questão estética e entrou no terreno da guerra cultural. Serrano, que até então circulava de forma discreta, passou a ser um nome global. Ironia fina: sem os protestos e sem os conservadores erguendo a bandeira contra a obra, talvez o trabalho tivesse permanecido restrito às paredes de um museu de médio porte.

O escândalo como estratégia de sobrevivência

Não se pode ignorar que o mundo da arte contemporânea é um grande mercado de narrativas. Quem consegue atrair manchetes, vende. Quem choca, entra para os catálogos. E quem irrita instituições religiosas de alcance planetário ganha, de quebra, uma aura de mártir da liberdade de expressão. Nesse sentido, Serrano não apenas fez uma fotografia — fez um movimento de xadrez cultural. A controvérsia virou capital simbólico.

Os críticos mais benevolentes dirão que a obra questiona a mercantilização da fé, o esvaziamento do sagrado em uma sociedade que transforma tudo em produto. Já os mais céticos acusam Serrano de reduzir a arte a um truque midiático, explorando a previsível indignação dos crentes. Talvez ambos estejam certos. Talvez Piss Christ seja justamente isso: a interseção entre arte e espetáculo, entre crítica e autopromoção.

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Hoje, quando as fronteiras entre provocação artística e marketing pessoal estão mais borradas do que nunca, a fotografia parece ter se tornado ainda mais atual. Vivemos na era dos cliques, das imagens que precisam viralizar para existir. O choque continua sendo uma moeda de troca eficaz. Nesse ponto, Serrano pode ser lido como um profeta do Instagram, avant la lettre.

Mas também é verdade que, passadas quase quatro décadas, a força escandalosa do trabalho diminuiu. A iconoclastia já não assusta como antes, e o público contemporâneo, acostumado a performances ainda mais radicais, talvez ache o gesto de Serrano até modesto. O que resta é uma fotografia que, além de bonita em termos técnicos, continua carregando a história do escândalo que a consagrou.

A questão que paira, portanto, é: será que Piss Christ sobreviveria sem a controvérsia? Provavelmente, sim, mas em uma escala muito menor. O mérito — ou o pecado, dependendo do ponto de vista — de Serrano foi unir habilidade estética, timing histórico e cálculo mercadológico. É aí que reside sua inteligência. E é aí que surge a ironia final: se o objetivo era criticar a banalização do sagrado, a própria obra acabou se tornando parte de uma engrenagem mercantil que vive da circulação de imagens provocativas.

Andres Serrano mergulhou um crucifixo em um copo de sua própria urina (Foto: Wiki)
Andres Serrano mergulhou um crucifixo em um copo de sua própria urina (Foto: Wiki)

Talvez o maior feito de Serrano não tenha sido o clique, mas a lição cruel e divertida que ele nos deixou: no mundo da arte, o escândalo vende melhor do que a contemplação. Essa máxima nunca pareceu tão verdadeira.


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