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Sapatos femininos: do poder ao estilo

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Por mais que os tempos sejam outros, o mundo ainda se inclina a julgar mulheres da cabeça aos pés — literalmente. E não há acessório mais simbólico, contraditório e revelador desse julgamento do que o sapato feminino. Da sandália gladiadora ao stiletto de 12 centímetros, da rasteirinha à bota de cano alto, os calçados femininos transitaram entre opressão e afirmação, entre dor e desejo, entre invisibilidade e poder. A pergunta não é mais se os sapatos têm história. A pergunta é: o que eles ainda dizem sobre as mulheres que os usam?

Durante décadas, o salto alto foi tratado como um instrumento de empoderamento. Poder sexual, poder financeiro, poder de presença. Marilyn Monroe — cuja coleção de scarpins podia sustentar um museu — dizia que “com os sapatos certos, uma mulher pode conquistar o mundo”. Mas qual é o custo de conquistar o mundo em cima de um salto-agulha? Talvez um joanete permanente, dores na lombar e, mais recentemente, uma reflexão crítica sobre por que, afinal, o desconforto foi romantizado como sofisticação.

“O calçado continua sendo uma senha de acesso (ou de exclusão) a certos espaços simbólicos. Apareça com uma sapatilha no mundo corporativo e será chamada de “relaxada”; com uma bota vermelha, de “exibida”; com uma Havaianas, de “imprópria”.”

Nos bastidores do poder, de Angela Merkel a Michelle Obama, o salto foi sendo discretamente trocado por sapatos mais confortáveis, sem que o mundo desabasse. No tapete vermelho e nas passarelas, tênis, botas flat e sandálias ortopédicas de grife agora desfilam com a mesma pompa de outrora. A lógica do “no pain, no gain” (sem dor, sem conquista) perde força diante de um mercado em transformação, onde conforto e identidade tomam o lugar da imposição silenciosa do sofrimento como elegância.

A própria indústria da moda — que nunca dorme no ponto quando fareja uma tendência rentável — percebeu o recado. Marcas como Balenciaga, Prada e Stella McCartney criam linhas inteiras de sapatos “feios”, inspiradas em Crocs, papetes e tênis de avô, e os vendem por cifras estonteantes. O luxo do século XXI é andar com liberdade — ou, pelo menos, simular isso com um design assinado.

Do salto à rasteira: os símbolos mudam, mas a vigilância continua

A queda do salto, porém, não significa necessariamente a queda das exigências. A mulher que hoje opta por um tênis em vez de um escarpim pode estar fazendo um gesto político — ou apenas tentando sobreviver a uma rotina de 14 horas entre reuniões, transporte público e filhos na escola. Mas ainda é julgada. O calçado continua sendo uma senha de acesso (ou de exclusão) a certos espaços simbólicos. Apareça com uma sapatilha no mundo corporativo e será chamada de “relaxada”; com uma bota vermelha, de “exibida”; com uma Havaianas, de “imprópria”. Em resumo: os sapatos mudaram, mas o tribunal popular segue atento.

É nesse caldeirão de expectativas, moda e identidade que os sapatos femininos ganham nova vida. Já não bastam ser bonitos: precisam ser éticos, veganos, sustentáveis, desejáveis e, se possível, vir com história embutida. Não é raro ver nas redes sociais perfis que fazem curadoria de “calçados conscientes” — como se cada pisada devesse ser carregada de significado. A consumidora contemporânea quer mais do que beleza: exige narrativa.

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Por outro lado, essa busca por propósito também pode beirar o esnobismo moral. Em vez do Louboutin com sola vermelha, agora ostenta-se o mocassim feito por artesãs indígenas do Xingu, com couro de reaproveitamento, vendido por R$ 2.100 a unidade. A culpa do consumo é aliviada com storytelling. E o capitalismo agradece, sorrindo de chinelo Birkenstock.

A verdade é que, como acontece com quase tudo no universo feminino, o sapato nunca é apenas um sapato. Ele é fetiche, manifesto, armadura, sentença. É a escolha silenciosa no início do dia que pode definir como a mulher será lida — ou ignorada — pelo mundo. E mesmo quando ninguém repara no que ela calça, o sapato ainda molda sua caminhada, literalmente. Afinal, é difícil manter a pose com uma tira que esmaga o tornozelo ou um salto que afunda na calçada.

O caro sapato Louboutin de sola vermelha ainda é uma grande aspiração (Foto: Activa)
O caro sapato Louboutin de sola vermelha ainda é uma grande aspiração (Foto: Activa)

A moda tenta reescrever suas regras com mais diversidade e menos opressão. Mas a vigilância estética continua com seus tentáculos bem posicionados. Enquanto isso, as mulheres seguem fazendo malabarismos entre o desejo de se expressar, a necessidade de pertencer e a vontade de apenas caminhar — sem dor, sem julgamento, sem tropeços sociais. Sapatos, afinal, podem ser lindos, mas seria ótimo se eles também calassem a boca.


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