A brilhante criação dos dicionários
A humanidade já inventou muitas coisas impressionantes: a escrita, a imprensa, o sorvete de pistache. Mas há uma invenção discreta, frequentemente negligenciada, que tem mais poder do que aparenta: o dicionário. Essa espécie de templo das palavras, onde o caos linguístico se encontra com a ordem gramatical, é ao mesmo tempo, espelho e moldura da civilização. É o lugar onde a língua se ajoelha para ser registrada — ou domesticada.
Engana-se quem pensa que dicionários são apenas listas enfadonhas de significados. Eles são repositórios de cultura, campos de batalha entre conservadores e reformistas da língua, além de instrumentos de poder disfarçados de papel. Quem define as palavras define o mundo. Ao decidir que “gilete” é um substantivo masculino, e não uma marca registrada que virou genérico, o dicionário determina fronteiras entre o coloquial e o oficial, o permitido e o marginal. Em tempos de IA escrevendo até bilhete de geladeira, nunca foi tão vital perguntar: quem está escrevendo o dicionário agora?
“A questão fundamental hoje é: com tantos algoritmos e assistentes virtuais, ainda precisamos de dicionários? A resposta, curiosamente, é sim — mas não os mesmos.”
Na tradição da língua portuguesa, há nomes sagrados nessa liturgia lexicográfica. O mais conhecido é o “Aurélio”, uma entidade quase mística que paira sobre as mesas escolares do Brasil desde 1975. Seu criador, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, foi um intelectual de fôlego renascentista — professor, filólogo, ensaísta e, claro, lexicógrafo. O dicionário que leva seu nome virou sinônimo de autoridade, uma espécie de oráculo linguístico que os professores invocam com a severidade de um juiz de tribunal.
Mas o “Aurélio” não reina sozinho. Há também o “Houaiss”, surgido em 2001 como uma resposta mais erudita e menos conservadora. Seu criador, Antônio Houaiss, também tinha credenciais intelectuais de peso: foi diplomata, ministro da Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras e apaixonado pela riqueza semântica da língua portuguesa. Seu dicionário é quase enciclopédico, carregando a ambição de ser não apenas um guia da língua, mas uma radiografia cultural. Houaiss queria nos mostrar que cada palavra traz a poeira da história colada nas letras.
E o “Michaelis”, que embora não tenha o mesmo prestígio entre acadêmicos, tem forte presença no mercado editorial. Criado pela editora Melhoramentos, com base em obras do filólogo alemão Henry Michaelis, o dicionário hoje é produzido por equipes brasileiras que atualizam suas edições com regularidade. Mais enxuto e pragmático, o Michaelis é o dicionário que você encontra na mochila de um estudante ou ao lado do caixa numa livraria, sempre pronto para explicar o que é “abacaxi” — literal e metaforicamente.
A Britânica e os pesos pesados da lexicografia
Não podemos esquecer da Encyclopædia Britannica, uma das mais antigas e respeitadas instituições do saber organizado, cuja incursão pelos dicionários em inglês também moldou gerações. Seu modelo anglófono influenciou a produção lexicográfica de diversos idiomas. O inglês, aliás, nos legou o Oxford English Dictionary, iniciado no século XIX e ainda hoje referência. Outro peso-pesado é o Webster’s Dictionary, criação do patriótico e reformador linguístico Noah Webster, que tentou, com sucesso parcial, simplificar e americanizar o inglês. Ele achava que as palavras deveriam obedecer à fonética e não à pompa britânica — por isso, o “colour” britânico virou “color” nos EUA. Um linguista com tesoura.
Há ainda as joias regionais e alternativas: o Dicionário de Regionalismos do Brasil, o Priberam, voltado ao português europeu, e os modernos dicionários online colaborativos, como o Wiktionary, que vivem no fio da navalha entre o saber democrático e o erro coletivo. São os dicionários da era pós-moderna: flexíveis, mutantes, muitas vezes desafiadores da norma.
A questão fundamental hoje é: com tantos algoritmos e assistentes virtuais, ainda precisamos de dicionários? A resposta, curiosamente, é sim — mas não os mesmos. O dicionário moderno precisa ir além do verbete. Ele deve contextualizar, trazer etimologia, variações regionais, registros históricos e até trechos literários. Precisa ser mais Borges que Aurélio, mais Guimarães Rosa que gramática normativa.
Há ainda um aspecto psicológico subestimado. Consultar um dicionário é um gesto de humildade. É admitir que não sabemos. Em tempos de certezas fabricadas em 280 caracteres, o ato de abrir um dicionário, físico ou digital, é quase subversivo. É um mergulho no oceano do desconhecido, onde cada palavra é uma ilha a ser explorada. E quando o dicionário é bom, a viagem nunca acaba na definição: ela começa ali.

O dicionário é um instrumento que diz mais sobre quem somos do que imaginamos. Ele não apenas registra o idioma: edita o mundo. Em suas páginas estão os debates sobre o que pode ou não pode ser dito — e como. E se toda linguagem é uma forma de poder, então todo dicionário é uma disputa travada com tinta, papel e agora bytes. Eles continuam brilhantes porque seguem sendo necessários. E perigosos.
Como surgiram as primeiras ruas asfaltadas?
setembro 23, 2025O estranho início do Sufrágio Universal
setembro 9, 2025Orson Welles e a "invasão marciana"
agosto 26, 2025Père-Lachaise, o cemitério das estrelas
agosto 12, 2025A caótica origem da Estátua da Liberdade
julho 29, 2025A incrível criação da batata chips
julho 1, 2025O primeiro (e esquecido) conflito global
junho 17, 2025Criação e evolução são complementares?
junho 5, 2025Comuna de Paris: uma revolução fracassada
maio 29, 2025A conturbada fundação da discutível FIFA
maio 22, 2025Desmistificando a vetusta Phi Beta Kappa
maio 15, 2025Holodomor: fome e terror na Ucrânia
maio 8, 2025
Eder Fonseca é o publisher do Panorama Mercantil. Além de seu conteúdo original, o Panorama Mercantil oferece uma variedade de seções e recursos adicionais para enriquecer a experiência de seus leitores. Desde análises aprofundadas até cobertura de eventos e notícias agregadas de outros veículos em tempo real, o portal continua a fornecer uma visão abrangente e informada do mundo ao redor. Convidamos você a se juntar a nós nesta emocionante jornada informativa.
Facebook Comments