A colonização portuguesa à moda brasileira
Se alguém dissesse a um certo Pedro Álvares Cabral, no longínquo abril de 1500, que cinco séculos depois seria Portugal o colonizado — linguística e culturalmente — pelo Brasil, ele talvez soltasse um “Ora pois!” entre perplexo e confuso. Pois é, Cabral, o jogo virou. Atualmente, os portugueses estão, queira-se ou não, escutando, consumindo e até imitando a língua brasileira com uma intensidade jamais vista.
A televisão brasileira já tinha feito um bom trabalho, sejamos francos. Desde as novelas da Globo dos anos 1980, passando por programas como Fantástico e Domingão do Faustão, a língua brasileira foi se infiltrando com charme e malemolência nas salas portuguesas. Mas o que antes era um contato eventual — ou, no máximo, um sotaque de novela — tornou-se hoje uma verdadeira avalanche linguística. Um tsunami de “caraca”, “tipo assim”, “véi”, “meu” e “topzera” que parece engolir o “fixe”, o “giro” e o “bué” lusos.
“Afinal, a língua, como diria Saussure com um leve rebolado, é viva, mutável, mas também é símbolo. E, no caso português, símbolo de uma cultura que está assistindo ao Brasil ocupando todos os andares do edifício da comunicação.”
Graças à internet, à globalização e a uma certa hegemonia cultural das redes sociais e do entretenimento, a língua brasileira não apenas atravessou o Atlântico: ela cravou bandeira, ergueu quiosque e está vendendo pastel na Praça do Comércio. Youtubers, influenciadores, músicos e gamers brasileiros dominam o YouTube, o TikTok, o Instagram, os podcasts e os ouvidos dos jovens portugueses. O português de Portugal, aos poucos, vai ficando encostado num cantinho do palco, como um velho ator que não decorou a nova peça.
O fenômeno não é apenas de sotaque. É de sintaxe, de vocabulário, de ritmo. Termos como “grana”, “curtir”, “rolê”, “parada”, “massa”, “balada” e “mano” estão substituindo expressões lusitanas em velocidade de rap carioca. Até a forma de narrar histórias e de fazer humor já carrega o DNA do Brasil. E o que dizer dos portugueses que agora falam “tipo assim”, com entonação de paulista cansado? Se os renascentistas portugueses descobriram um novo mundo, os lusitanos modernos parecem ter se rendido a um novo modo de falar.
Uma língua, dois donos, um impasse
É claro que isso gera incômodos. Em Lisboa, Porto e Coimbra, acadêmicos se descabelam, professores se entreolham, e políticos tentam articular algum tipo de resistência — um “Acordo Ortográfico” aqui, uma “defesa da norma europeia” ali. Mas a realidade linguística pouco liga para normativas: ela se forma no uso, nas ruas, nos memes. A língua brasileira é mais do que um sotaque: é um ecossistema com gírias, musicalidade, e capacidade de se moldar ao que há de mais pop e viral no planeta.
Portugal, embora mais antigo, é menor demograficamente, econômica e culturalmente no cenário lusófono. O Brasil, com seus 215 milhões de falantes, uma indústria cultural poderosa e uma produção incessante de conteúdo, simplesmente impôs a sua versão do idioma. E sejamos justos: não foi à força. Foi com sedução. A língua brasileira é a Anitta dos dialetos, o Neymar das gírias, o Paulo Freire dos memes.
Mas há quem alerte para o risco de apagamento da variedade portuguesa, uma espécie de erosão identitária silenciosa. Como proteger a diversidade linguística sem cair num purismo antipático ou numa xenofobia disfarçada de zelo gramatical? Eis o dilema. Afinal, a língua, como diria Saussure com um leve rebolado, é viva, mutável, mas também é símbolo. E, no caso português, símbolo de uma cultura que está assistindo ao Brasil ocupando todos os andares do edifício da comunicação.
Não se trata, porém, de um domínio malicioso. O Brasil não está colonizando Portugal com tanques ou tratados: está fazendo isso com streams, novelas e tweets. Com “lives” de 4 horas, com dublagens engraçadas e com personagens como “Juliette”, “Luva de Pedreiro” e “Neymar Jr.”. O que era “português do Brasil” passou a ser, em muitos casos, o português padrão na cabeça de muitos falantes, inclusive europeus.
É a vingança pós-colonial mais sutil e eficaz da história da língua portuguesa. Uma espécie de retorno do repressed, só que com trilha sonora de funk e roteiro de youtuber. Se Camões ressuscitasse hoje, talvez escrevesse “Os Lusíadas 2: a invasão brasileira”. E rimaria “favela” com “canela” sem o menor constrangimento.

No fim das contas, pode-se dizer que Portugal descobriu o Brasil, sim. Mas o Brasil, com a paciência tropical que lhe é peculiar, soube esperar — e, séculos depois, devolveu o favor com um vocabulário cheio de gírias, um carisma avassalador e uma linguagem que é, acima de tudo, irresistível.
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