A Revolução dos Bichos: maldição?
Num mundo em que os algoritmos ditam comportamentos e os humanos aceitam passivamente migalhas de autonomia, A Revolução dos Bichos, de George Orwell, talvez devesse ser relido como um manual prático, e não como mera fábula política. Escrito em 1945, o livrinho — que em número de páginas é pequeno, mas em alcance intelectual é colossal — narra a insurreição dos animais de uma granja contra os humanos, apenas para, aos poucos, trocarem um jugo por outro. A ironia? Eles mesmos se tornam seus algozes.
À primeira vista, o livro é uma alegoria transparente do stalinismo e da corrupção revolucionária soviética. Os porcos, liderados por Napoleão, expulsam o fazendeiro Sr. Jones e prometem uma era de igualdade. Mas, como qualquer leitor atento — ou qualquer cidadão com conta de luz nas alturas e salário estagnado — já poderia prever, o sonho da coletividade é devorado por um novo autoritarismo disfarçado de boas intenções.
“Líderes que um dia vociferaram contra os porcos da vez, hoje se banqueteiam no mesmo cocho. E a população, entre cínica e desesperançada, continua aceitando que talvez seja assim mesmo — o mundo pertence aos porcos, e a nós, cabe mastigar palha e sorrir.”
Avançando oitenta anos até nosso curioso 2025, a fábula ganha tons proféticos. Quem seriam hoje os porcos da história? Políticos? Executivos de big techs? Líderes midiáticos? Talvez uma amálgama dos três. A “igualdade” é agora digitalizada, algoritimizada e monitorada por redes que prometem liberdade, mas te rastreiam com a eficácia de um porco farejador. Afinal, como já advertia a máxima do livro: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.”
Enquanto isso, as massas — ou melhor, as massas conectadas — se comportam como os cavalos do livro, especialmente o ingênuo Sansão, que repete o mantra “trabalharei mais ainda” mesmo diante do colapso. Ele acredita, até o fim, que os líderes sabem o que estão fazendo. Spoiler amargo: eles não sabem. Ou pior — sabem exatamente, e é isso que nos deve alarmar.
Das granjas às redes: um porco chamado algoritmo
Na era atual, a revolução não começa com feno e relinchos, mas com dados e notificações. Troque o curral pela timeline, os porcos pelos CEOs sorridentes de empresas “do bem”, e o resultado é o mesmo: controle. O cidadão médio hoje acredita que tem voz, mas sua participação é frequentemente limitada a posts que viralizam apenas se forem validados por critérios invisíveis. Em 1945, Orwell estava preocupado com a censura estatal. Em 2025, a censura vem travestida de “curadoria”.
E não é preciso ir longe para ver como o modelo da Granja dos Bichos se replicou. Os líderes revolucionários prometem rupturas e igualdade, mas logo se refestelam em banquetes de privilégios. Seja no Congresso, nos conselhos administrativos ou nos palanques digitais, a narrativa é sempre a mesma: primeiro expulsam os Jones da vez, depois reescrevem as regras a seu favor. Lembra quando todos poderiam participar de decisões coletivas? Pois é — hoje, até as assembleias de condomínio têm mais democracia do que certas plataformas de governança estatal.
O paralelo com Sansão, o cavalo fiel, é talvez o mais doloroso. São os trabalhadores incansáveis, os entregadores de aplicativo, os professores mal pagos, os enfermeiros exaustos, que mantêm a máquina funcionando, crendo que, com mais esforço, o paraíso virá. No entanto, como na obra, acabam “aposentados” com honrarias vazias e um fim silencioso. Orwell sabia: as revoluções costumam se alimentar dos próprios heróis.
No contexto brasileiro, o enredo da fábula se ajusta como luva. Após décadas de promessas redentoras vindas da esquerda, da direita e do além ideológico, o país segue empacado entre a esperança e o cinismo. Líderes que um dia vociferaram contra os porcos da vez, hoje se banqueteiam no mesmo cocho. E a população, entre cínica e desesperançada, continua aceitando que talvez seja assim mesmo — o mundo pertence aos porcos, e a nós, cabe mastigar palha e sorrir.
Mas nem tudo está perdido. Há na obra, apesar de seu tom sombrio, uma semente de lucidez. O animal mais sábio da granja, Benjamin, o burro, nunca acreditou em promessas, nem se deixou seduzir por slogans. Ele via tudo, entendia tudo — mas pouco fazia. E é aí que Orwell deixa sua provocação final: enxergar é inútil se não houver ação.

A Revolução dos Bichos, portanto, não é apenas uma crítica ao autoritarismo. É um espelho incômodo, onde vemos refletidos nossos próprios ciclos de ilusão e submissão. A pergunta que fica é simples, mas urgente: continuaremos sendo Sansões esperançosos, ou aprenderemos finalmente com Benjamin a pensar antes de obedecer? Porque, no fim, o que Orwell quis dizer talvez não seja que os porcos sempre vencerão — mas que só vencem porque os outros animais esquecem de resistir.
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