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Boimate: a incrível barriga de Veja

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Em meados da década de 1980, a revista Veja protagonizou um episódio que mistura ingenuidade jornalística, ciência e humor involuntário, criando um marco curioso na história da imprensa brasileira. Trata-se do célebre caso do boimate, um suposto híbrido de boi com tomate que, segundo a revista, prometia revolucionar a alimentação mundial. O que se seguiu, entretanto, foi um espetáculo tragicômico que até hoje é lembrado por sua mistura de credulidade e espetáculo editorial.

O boimate nasceu das páginas do New Scientist, a renomada revista britânica de ciência, mas com um detalhe crucial: o artigo original era uma piada de Primeiro de Abril. Dois “cientistas alemães”, Barry McDonald e William Wimpey – nomes que não resistem ao trocadilho com redes de fast-food – teriam submetido células bovinas e de tomate a descargas elétricas, resultando em uma fruta com discos de proteína animal intercalados com camadas de tomate. Uma ideia absurda, impossível e, ao mesmo tempo, deliciosa de imaginar: um filé ao molho de tomate cultivado em laboratório, com casca de couro para conservar a frescura.

“Hoje, o boimate segue sendo uma referência irônica, quase uma lenda urbana da imprensa brasileira. Ele lembra que, mesmo em tempos pré-internet, quando a informação circulava mais devagar, a velocidade da imaginação podia ultrapassar a capacidade de verificação.”

Quando a edição 764 da Veja chegou às bancas, em 27 de abril de 1983, a revista não percebeu a pegadinha. Publicou o artigo como se fosse verdade, incluindo declarações de um engenheiro genético da USP, que teria ficado impressionado com o feito. A manchete parecia saída de um roteiro de ficção científica barata: a ciência transformando finalmente o tomate em carne. A reportagem não apenas reproduziu a mentira britânica, como acrescentou uma camada de credibilidade local que, com o tempo, se transformaria em motivo de constrangimento editorial.

A repercussão foi imediata e negativa. Vários veículos apontaram o equívoco, incluindo um desmentido formal do Estado de S. Paulo, que alertou para a natureza satírica do artigo original. Só então a Veja admitiu o erro, em julho de 1983, pedindo desculpas aos leitores pelo “lastimável equívoco”. Um ano depois, em 1984, publicou uma errata detalhando que havia caído numa brincadeira do Primeiro de Abril.

O jornalismo entre credulidade e espetáculo

O caso do boimate é emblemático porque evidencia um problema que persiste até hoje: a vulnerabilidade do jornalismo à tentação do espetáculo. Em vez de checar fontes e desconfiar de afirmações extraordinárias, a revista optou pelo fascínio do inusitado. A lição é clara: quando a imprensa se rende à sedução de uma boa história, mesmo que científica, a credibilidade pode virar alvo de chacota.

Ao mesmo tempo, o episódio é um espelho da relação entre ciência e mídia. A ciência é complexa, cheia de protocolos, validações e repetições; a mídia, por outro lado, precisa transformar dados e experimentos em narrativas digestíveis, quase sempre com sabor de manchete. Quando essa equação falha, nasce o boimate: um híbrido impossível, mas irresistível para a imaginação popular.

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Além do humor involuntário, o boimate também sugere uma crítica silenciosa à pressa editorial. Veja, uma das revistas mais influentes do país, mostrou que nem mesmo grandes veículos estão imunes à credulidade – especialmente quando o assunto é ciência, um terreno que mistura jargões, descobertas rápidas e leitores ansiosos por novidades mirabolantes. O episódio, portanto, é pedagógico: alerta para a necessidade de checagem, ceticismo e, sobretudo, humildade diante de matérias que soam inacreditáveis.

Hoje, o boimate segue sendo uma referência irônica, quase uma lenda urbana da imprensa brasileira. Ele lembra que, mesmo em tempos pré-internet, quando a informação circulava mais devagar, a velocidade da imaginação podia ultrapassar a capacidade de verificação. A história do boimate é tão deliciosa quanto impossível: um lembrete de que o jornalismo precisa equilibrar rigor e criatividade, mas nunca à custa da verdade.

Boimate nasceu das páginas do New Scientist, a renomada revista britânica (Foto: Wiki)
Boimate nasceu das páginas do New Scientist, a renomada revista britânica (Foto: Wiki)

Entre credulidade e humor involuntário, o boimate se tornou um ícone da imprensa que tropeça em si, provando que, às vezes, a incrível barriga de Veja é apenas a soma de ousadia mal calibrada e uma boa dose de ingenuidade.


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