Cats: o musical lucrativo de um perito
Quando Andrew Lloyd Webber decidiu transformar um livro de poemas de T.S. Eliot em um espetáculo musical, muitos acharam a ideia absurda. “Gatos cantando no palco? Isso nunca vai dar certo”, teriam dito alguns produtores mais céticos da Broadway. Pois bem, deu certo, e muito. Cats, estreado em 1981 em Londres, tornou-se um dos maiores fenômenos do teatro musical do século XX, quebrando recordes de bilheteria, consolidando a reputação de Lloyd Webber como um dos mais rentáveis compositores do gênero e demonstrando, mais uma vez, que o público é capaz de pagar caro por um show felino repleto de purpurina, danças contorcionistas e melodias pegajosas.
O musical, baseado na obra “Old Possum’s Book of Practical Cats”, não tem exatamente uma narrativa convencional. É quase uma colagem de personagens e canções apresentadas em torno do ritual dos Jellicle Cats, que escolhem um felino para renascer em uma nova vida. Uma parábola sobre morte e renovação? Uma alegoria sobre a comunidade? Uma desculpa para criar um espetáculo visual e musicalmente arrebatador? Talvez tudo isso, talvez nada. O fato é que Cats não se apoia em uma trama densa ou complexa, mas em um desfile de números musicais que prendem a atenção — e o bolso — da plateia.
“Muitos críticos veem em Cats uma espécie de ópera de sabão em pó, um produto de consumo rápido, que impressiona mas não se sustenta intelectualmente.”
O segredo do sucesso não é difícil de decifrar: figurinos chamativos, coreografias atléticas, iluminação que hipnotiza e, claro, a canção “Memory”. Essa balada, interpretada pela personagem Grizabella, tornou-se um dos maiores hinos da Broadway, gravada por artistas de Barbra Streisand a Celine Dion, e responsável por boa parte da longevidade do musical. Quando o público ouve “Memory”, entra num transe coletivo, mistura de nostalgia, drama e catarse. Lloyd Webber pode até ser acusado de sentimentalismo fácil, mas quem disse que sentimentalismo não vende ingressos?
É justamente essa capacidade de Webber de transformar literatura, mitologia ou simples devaneios em uma máquina de fazer dinheiro que irrita tanto críticos quanto fascina plateias. Ele não é o Mozart da Broadway — e talvez nem queira ser. É, sim, um engenheiro de emoções, um calculista do espetáculo, alguém que compreendeu como ninguém o casamento entre kitsch e grandiosidade, e como isso podia se traduzir em cifras milionárias. Cats é um caso exemplar: poucos entendem sua lógica, mas milhões pagam para vê-lo.
Entre o gênio e o truqueiro
Há quem defenda que Lloyd Webber é um gênio capaz de trazer erudição a um público de massa, e há quem o veja como um ilusionista que transforma truques banais em ouro puro. A verdade, como sempre, está no meio. Em Cats, o compositor não tem medo de se arriscar em harmonias ousadas e construções musicais sofisticadas, mas também não hesita em repetir fórmulas que soam confortáveis ao ouvido do espectador. O equilíbrio entre o audacioso e o previsível é o que garante a sua permanência nos palcos.
A longevidade do musical não é apenas mérito de Lloyd Webber, mas também de uma estratégia de marketing digna de Harvard Business School. Os gatos se transformaram em uma marca global: camisetas, canecas, pôsteres, e até mesmo um filme (desastroso, diga-se de passagem) que tentou reproduzir a magia teatral e acabou gerando um festival de memes. Se Cats sobreviveu até ao fiasco cinematográfico de 2019, é porque seu DNA está impregnado na cultura pop de maneira quase indestrutível.
Outro ponto interessante é como Cats capturou uma época. Nos anos 1980, o musical se encaixava no espírito de grandiosidade e exagero da era Thatcher-Reagan. Figurinos brilhantes, números coreografados como se fossem videoclipes, e um senso de espetáculo maior que a própria vida. Era o triunfo do capitalismo teatral: transformar poesia modernista em um produto de exportação global.
Claro, nem tudo são aplausos. Muitos críticos veem em Cats uma espécie de ópera de sabão em pó, um produto de consumo rápido, que impressiona mas não se sustenta intelectualmente. Têm razão em parte, mas esquecem-se de que a Broadway e o West End nunca foram templos da filosofia; sempre foram arenas de entretenimento, sustentadas por bilheteria e turistas ávidos por experiências “imperdíveis”. Nesse sentido, Webber apenas levou a lógica às últimas consequências, tornando-se o Henry Ford dos musicais: produção em série de emoções para consumo global.

Se o mérito de um artista é medido apenas pelo refinamento da crítica, talvez Lloyd Webber não esteja entre os maiores. Mas se o critério é impacto cultural e popularidade, ele figura entre os gigantes. Cats é, ao mesmo tempo, o exemplo máximo da frivolidade teatral e uma prova incontestável do poder do espetáculo. É um musical que desafia intelectuais a odiá-lo, mas que continua a conquistar plateias no mundo inteiro. Talvez aí resida sua genialidade: criar algo que não precisa ser amado por todos, basta ser comprado por muitos.
Como a fama matou Anna Nicole Smith
setembro 27, 2025Cocoon II e a propaganda da “melhor idade”
setembro 26, 2025Bora-Bora: Herbert e Paula espelhados
setembro 25, 2025O Jardim das Cerejeiras: sempre encenada
setembro 24, 2025Caminho das Borboletas: fênix Galisteu
setembro 23, 2025A TV 3.0 salvará as emissoras do país?
setembro 22, 2025Leila Lopes: a rotina como um fardo
setembro 20, 2025Nosferatu está vivo, sombrio e ainda pulsante
setembro 19, 2025Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop: improvável
setembro 18, 2025Gargântua ou Dumier batendo no poder
setembro 17, 2025Ilíada: histórica, essencial e dificílima
setembro 16, 2025Revista MAD: o mimimi aniquilou-a?
setembro 15, 2025
Eder Fonseca é o publisher do Panorama Mercantil. Além de seu conteúdo original, o Panorama Mercantil oferece uma variedade de seções e recursos adicionais para enriquecer a experiência de seus leitores. Desde análises aprofundadas até cobertura de eventos e notícias agregadas de outros veículos em tempo real, o portal continua a fornecer uma visão abrangente e informada do mundo ao redor. Convidamos você a se juntar a nós nesta emocionante jornada informativa.
Facebook Comments