Cidade de Deus: masterclass cinematográfico
Há filmes que envelhecem, e há os que se tornam atemporais. Cidade de Deus pertence a essa segunda categoria — a dos que, mesmo vistos décadas depois, ainda soam como um soco no estômago e um hino visual à brutalidade. Lançado em 2002, o longa de Fernando Meirelles (com codireção de Kátia Lund) não apenas redefiniu o cinema brasileiro: ele o eletrificou. É o raro caso em que o caos social se transforma em estética, e a miséria em narrativa universal. Um retrato do inferno cotidiano disfarçado de espetáculo técnico, que conseguiu o impossível: ser ao mesmo tempo, entretenimento e denúncia, arte e realidade.
O filme, adaptado do livro homônimo de Paulo Lins, atravessa três décadas da vida na favela carioca Cidade de Deus, mostrando a ascensão do crime organizado, a perda da inocência e o destino trágico de uma juventude emparedada entre a violência e o esquecimento. É cinema de urgência, filmado com ritmo de thriller, mas pulsando como um samba nervoso. Meirelles conseguiu algo raríssimo: fazer o espectador estrangeiro entender a favela sem precisar de legenda social. E mais raro ainda — fez o brasileiro olhar para ela sem anestesia.
“A crítica, claro, amou. Roger Ebert, o crítico mais célebre dos EUA, chamou-o de “um dos melhores filmes que já vi sobre a vida urbana moderna”. E, de fato, Cidade de Deus é global sem perder o sotaque — um Scorsese com chinelo Havaianas, um Tarantino que cresceu em meio a barracos de tijolo cru.”
Tecnicamente, Cidade de Deus é uma aula — uma masterclass em direção, montagem e fotografia. César Charlone, o diretor de fotografia, transforma o sol do Rio em holofote dramático; Daniel Rezende, na edição, cria cortes que lembram tiroteios coreografados por Walter Murch depois de uma overdose de adrenalina. Tudo é preciso, quase matemático, mas sem perder o pulso humano. Há ritmo de videoclipe e densidade de romance russo. É um filme em que o realismo não é um estilo, mas uma sentença.
E há o elenco — um mosaico de rostos que não vinham da elite artística, mas das próprias comunidades. Aquela autenticidade inimitável deu vida a personagens que, vinte anos depois, continuam vivos no imaginário coletivo. Zé Pequeno e Bené tornaram-se arquétipos — o mal absoluto e o charme da delinquência, o inferno e seu cúmplice sorridente. Rocket, o narrador-fotógrafo, é o alter-ego do próprio Paulo Lins, o olho que vê, mas não atira, o artista em meio ao caos.
Entre o mito e o mercado
O impacto de Cidade de Deus ultrapassou a tela. Foi o filme que inseriu o Brasil no mapa do cinema mundial contemporâneo, sem precisar recorrer ao exotismo barato nem ao romantismo tropical. Quando foi indicado a quatro Oscars — direção, roteiro adaptado, edição e fotografia —, a indústria finalmente olhou para o país além do samba e do futebol. Não era só o reconhecimento de uma boa história, mas de uma nova linguagem audiovisual. O “cinema da retomada”, que havia renascido na década de 1990 com Central do Brasil e O Quatrilho, encontrou ali seu ápice, e também seu encerramento. Após Cidade de Deus, nada foi igual.
Mas há ironias na glória. Enquanto o mundo aplaudia o filme como obra-prima, muitos dos atores vindos das favelas continuaram enfrentando a precariedade que o longa denunciava. A arte refletiu a vida — e a vida não mudou. A indústria, encantada com a autenticidade dos rostos, esqueceu-se de lhes dar continuidade profissional. É o paradoxo da representação: o sucesso internacional que não se traduziu em transformação social.
Ainda assim, a contribuição cultural é inegável. Cidade de Deus abriu caminho para uma geração de cineastas brasileiros interessados em contar histórias urbanas com vigor estético e coragem política. Filmes como Tropa de Elite ou séries como Sintonia e Mister Brau devem algo a esse pioneirismo: a coragem de tratar o Brasil real sem verniz e com câmera nervosa.
A crítica, claro, amou. Roger Ebert, o crítico mais célebre dos EUA, chamou-o de “um dos melhores filmes que já vi sobre a vida urbana moderna”. E, de fato, Cidade de Deus é global sem perder o sotaque — um Scorsese com chinelo Havaianas, um Tarantino que cresceu em meio a barracos de tijolo cru. É cinema feito com sangue quente e neurônio frio.
Revê-lo é como folhear um diário de país que ainda não aprendeu com o próprio retrato. A favela mudou, as armas evoluíram, mas o ciclo continua. Talvez essa seja a grandeza do filme: sua atualidade triste. Como toda obra-prima, ele não oferece consolo — apenas reflexão. E, como toda boa ironia, revela que o Brasil é capaz de criar beleza até na barbárie.

Cidade de Deus não é apenas um marco da sétima arte nacional; é a lembrança incômoda de que o caos pode ser belo, e que o Brasil, quando quer, transforma até o desespero em arte exportável. Um masterclass de forma, conteúdo e, sobretudo, coragem estética.
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