Easy Rider: loucos num filme louco
Poucos filmes resumem tão bem a ressaca lisérgica do sonho americano quanto Easy Rider, lançado em 1969. Dirigido por Dennis Hopper, com roteiro assinado a seis mãos entre ele, Peter Fonda e Terry Southern (embora Fonda e Hopper ainda brigassem por crédito décadas depois), o filme virou símbolo de uma contracultura que queria liberdade, mas encontrou violência. É uma obra ao mesmo tempo, mítica e bagunçada, revolucionária e truncada, profunda e, às vezes, só… chapada.
Easy Rider não foi pensado para ganhar Oscars, e muito menos para agradar às grandes plateias conservadoras da época. Pelo contrário: seu espírito era anárquico, livre, como as estradas americanas que os protagonistas percorrem em suas motocicletas cromadas — ícones de uma liberdade que, vista de perto, revela ferrugens morais. Wyatt (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hopper) são dois motoqueiros outsiders que pegam a estrada rumo a Nova Orleans, após lucrar vendendo cocaína no México. A viagem, recheada de encontros com hippies, campônios hostis e advogados bêbados, vira uma alegoria do descompasso entre a juventude contestadora e a América profunda, armada até os dentes e assustada com qualquer forma de alteridade.
“Easy Rider talvez tenha sido um dos primeiros filmes a usar a música pop não como enfeite, mas como dramaturgia — prenunciando o que Tarantino faria com muito mais sofisticação décadas depois.”
O filme foi lançado sob os auspícios de uma Hollywood em crise, que já não sabia mais o que vender ao público. A era dos grandes estúdios estava acabando, e Easy Rider apareceu como um suspiro sujo e libertário, feito com orçamento minúsculo, câmera na mão e ideias em combustão. Era 1969, o mesmo ano de Woodstock e do assassinato de Sharon Tate pela seita de Charles Manson.
O otimismo psicodélico já estava começando a azedar, e o filme capta isso — não com discursos, mas com poeira, suor e balas disparadas por trás de janelas de picapes.
A liberdade como farsa ambulante
É tentador tratar Easy Rider como um épico da liberdade. E muita gente o faz. Mas talvez o mais honesto seja dizer que o filme é um epitáfio precoce da ingenuidade hippie. O famoso trecho em que o advogado alcoólatra vivido por Jack Nicholson (em sua estreia marcante) comenta que “o que assusta as pessoas não é a liberdade, é ver alguém que realmente a tem” diz mais sobre o ethos americano do que qualquer manifesto político. O sistema não apenas não tolera a diferença — ele a elimina com fuzil e sorriso.
Nesse sentido, Easy Rider é também um filme de horror: o horror da América contra si mesma. Os dois protagonistas não são santos. Vendem drogas, evitam compromissos, têm uma visão infantilizada da vida comunitária, e vivem de ilusões românticas sobre o caminho. Mas, ainda assim, são perseguidos, agredidos e assassinados — num desfecho que mais parece uma emboscada espiritual do que uma conclusão narrativa. Não há redenção. Apenas fogo e ruínas.
Há quem diga que Hopper dirigiu chapado grande parte do tempo, e isso se nota: o filme tem cortes esquisitos, transições tropeçadas e um senso de ritmo que flutua entre o meditativo e o errático. As cenas de alucinação em um cemitério, por exemplo, duram mais do que o necessário e beiram o amadorismo experimental. Mas é justamente esse desleixo aparente que lhe confere autenticidade. Easy Rider não quer parecer um filme: ele quer parecer uma trip — e consegue.
A trilha sonora, por outro lado, é um clássico à parte. Born to Be Wild, do Steppenwolf, tornou-se inseparável da imagem das Harleys cruzando os desertos do Arizona. Jimi Hendrix, The Byrds, The Band, todos aparecem ali, não como pano de fundo, mas como motor emocional da narrativa. Easy Rider talvez tenha sido um dos primeiros filmes a usar a música pop não como enfeite, mas como dramaturgia — prenunciando o que Tarantino faria com muito mais sofisticação décadas depois.
Curiosamente, a maior lição de Easy Rider é uma desconfortável inversão: não se trata de celebrar uma jornada, mas de alertar para sua impossibilidade. A estrada, símbolo máximo da liberdade americana, transforma-se num caminho sem saída. E o destino final não é Nova Orleans, nem um ritual de purificação — é a morte mesmo. Real, abrupta, grotesca. Um furo de bala como ponto final na utopia.
Olhando para trás, Easy Rider permanece relevante — não como símbolo de uma liberdade possível, mas como registro de uma ilusão em colapso. Vivemos numa era em que a estrada virou algoritmo, e os cowboys da contracultura foram substituídos por influenciadores em vans Wi-Fi. Mas o medo da diferença continua. E a violência latente, também. Mudaram os figurinos, mas o roteiro geral ainda ecoa a mesma paranoia de um país (e um mundo) que não sabe lidar com seus próprios fantasmas.

Assistir a Easy Rider hoje é, em partes iguais, mergulhar num relicário cultural e encarar um espelho sujo. É loucura? É. Mas uma loucura que denuncia, provoca, e insiste em existir. Como a melhor arte sempre fez.
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