Festim Diabólico: puro suco do Brasil
Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, nunca pisou em Copacabana para se deliciar com um chope no fim da tarde, tampouco visitou as vielas de São Paulo para entender o caos urbano que hoje serviria de inspiração cinematográfica de sobra. Mas, curiosamente, Festim Diabólico (Rope, 1948) carrega em sua essência um quê de brasilidade, aquele tempero ácido, disfarçado de charme intelectual, que faz da tragédia um espetáculo social — ou, como se diria por aqui, um “puro suco do Brasil”.
O filme, inspirado livremente no caso real de Leopold e Loeb — dois jovens que cometeram um assassinato apenas para provar sua superioridade intelectual —, revela o lado mais pretensioso e niilista da elite cultural. A história poderia facilmente ter se passado em qualquer cobertura dos Jardins, em São Paulo, ou em um triplex da Vieira Souto, no Rio. Jovens endinheirados, desocupados e convencidos de sua genialidade: eis um retrato que não envelhece, muito menos quando comparado ao país tropical.
“O banquete hitchcockiano é, portanto, uma metáfora precisa do nosso jeito de lidar com tragédias e contradições. Transformamos dramas em memes, cadáveres em pauta de talk show, crimes em séries documentais.”
Rodado em plano-sequência, com apenas alguns cortes “invisíveis”, Hitchcock queria experimentar a sensação de um teatro filmado, um espetáculo que prende o espectador pela tensão ininterrupta. E é aí que a analogia com o Brasil se torna irresistível: vivemos, há décadas, em um grande plano-sequência de desastres. Nada corta, nada interrompe, a trama segue contínua, acumulando erros, tragédias e risadas nervosas — exatamente como na festa sinistra organizada pelos protagonistas do filme, que escondem um cadáver dentro do baú da sala de jantar, enquanto brindam com taças de champanhe.
Tal qual a sociedade brasileira, o longa de Hitchcock expõe a farsa do verniz civilizatório. Todos se arrumam, todos sorriem, todos fingem que não há nada errado — mas o cheiro de morte, real ou simbólico, insiste em escapar pelas frestas. O crime é o centro da festa, mas ninguém se dá ao trabalho de perceber, talvez por conveniência, talvez por medo, talvez porque a plateia gosta mesmo é do espetáculo.
O Brasil como banquete hitchcockiano
Se Hitchcock tivesse escolhido ambientar Festim Diabólico no Brasil, não faltariam cenários. Imaginem a trama transposta para um jantar em Brasília: ministros, empresários e intelectuais, taças erguidas, enquanto um escândalo fresco repousa discretamente debaixo da mesa, guardado a sete chaves mas conhecido por todos. Seria apenas mais uma noite de gala no Planalto, onde cadáveres políticos são sempre “decorativos” — às vezes enterrados em comissões parlamentares, às vezes em delações premiadas.
O banquete hitchcockiano é, portanto, uma metáfora precisa do nosso jeito de lidar com tragédias e contradições. Transformamos dramas em memes, cadáveres em pauta de talk show, crimes em séries documentais. A tensão que Hitchcock constrói com maestria — o espectador sabendo do crime desde o início, enquanto os demais personagens permanecem cegos — é exatamente o que vivemos no noticiário: todos sabemos, todos enxergamos, mas fingimos ignorar até que a festa acabe.
A ligação entre Hitchcock e o Brasil pode parecer improvável, mas é real. O cineasta era fascinado pela complexidade humana, pela corrupção da moral e pela hipocrisia social — três marcas registradas da vida nacional. Basta observar como adoramos celebrar a esperteza, a “malandragem”, como se fosse inteligência superior. Em Festim Diabólico, a dupla assassina acredita justamente nisso: que pode cometer um crime porque são mais espertos que a média. Alguma semelhança com discursos que ouvimos em corredores de poder?
Além disso, há a questão estética. O filme é um exercício de sofisticação, assim como o Brasil gosta de se exibir em tapetes vermelhos internacionais, tentando ocultar o caos diário atrás de glamour de exportação. Mas basta uma rachadura no roteiro — ou uma câmera indiscreta — para que a farsa desmorone.
Festim Diabólico não é apenas um clássico experimental de Hitchcock, é também um espelho incômodo. Ao mostrar a elite intelectual brincando de deuses, o filme desnuda a fragilidade de qualquer moral que se sustente apenas em aparências e discursos bonitos. O Brasil, ao longo de sua história, tem se especializado justamente nisso: manter o cadáver dentro do baú, enquanto a festa continua animada.
Eis o ponto: o crime, em Hitchcock ou em Brasília, nunca é apenas o ato em si, mas a coreografia que o cerca. O que choca não é a morte, mas a indiferença elegante diante dela. O espetáculo é sempre maior que a tragédia. Talvez por isso, quando olhamos para Festim Diabólico hoje, vemos não só um exercício genial de cinema, mas também uma radiografia perturbadora de um país que insiste em se comportar como protagonista de um plano-sequência interminável.

Se Hitchcock buscava tensão e ironia, nós oferecemos, de bandeja, o palco perfeito: um banquete sem fim, taças erguendo-se entre cadáveres, brindes feitos com cinismo, e a plateia, cúmplice, pedindo bis. Afinal, o Brasil, como Hitchcock bem entenderia, é um eterno “festim diabólico”.
Bora-Bora: Herbert e Paula espelhados
setembro 25, 2025O Jardim das Cerejeiras: sempre encenada
setembro 24, 2025Caminho das Borboletas: fênix Galisteu
setembro 23, 2025A TV 3.0 salvará as emissoras do país?
setembro 22, 2025Leila Lopes: a rotina como um fardo
setembro 20, 2025Nosferatu está vivo, sombrio e ainda pulsante
setembro 19, 2025Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop: improvável
setembro 18, 2025Gargântua ou Dumier batendo no poder
setembro 17, 2025Ilíada: histórica, essencial e dificílima
setembro 16, 2025Revista MAD: o mimimi aniquilou-a?
setembro 15, 2025Chacon e Corona: o HIV no destino
setembro 13, 2025A Paixão de Cristo: hemoglobina pura
setembro 12, 2025
Eder Fonseca é o publisher do Panorama Mercantil. Além de seu conteúdo original, o Panorama Mercantil oferece uma variedade de seções e recursos adicionais para enriquecer a experiência de seus leitores. Desde análises aprofundadas até cobertura de eventos e notícias agregadas de outros veículos em tempo real, o portal continua a fornecer uma visão abrangente e informada do mundo ao redor. Convidamos você a se juntar a nós nesta emocionante jornada informativa.
Facebook Comments