Sua Página
Fullscreen

“Memória”: a visão de René Magritte

Anúncios
Compartilhe este conteúdo com seus amigos. Desde já obrigado!

René Magritte continua sendo um dos artistas mais instigantes do século XX, sobretudo por sua habilidade em transformar imagens corriqueiras em enigmas visuais carregados de poesia e inquietação. Sua obra “Mémoire” (Memória), realizada em 1948, é um desses exemplos emblemáticos de como Magritte usava a pintura para transcender a simples representação da realidade e provocar questionamentos filosóficos profundos.

Na tela, vemos o busto de uma mulher com os olhos semicerrados e um corte na testa, de onde escorre um fio de sangue. Ao fundo, um céu azul sereno com algumas nuvens brancas. O contraste entre o ferimento e a tranquilidade do ambiente gera um desconforto imediato. A escultura feminina remete à tradição clássica da arte europeia, mas Magritte a transforma, deslocando-a de sua função estética habitual e inserindo-a em um contexto perturbador, como se dissesse que até a beleza imutável da escultura pode ser atingida por algo externo, violento e inexplicado.

“Revisitar essa obra nos lembra que a arte de Magritte continua atual, especialmente em tempos em que a memória coletiva parece cada vez mais fragmentada, distorcida por tecnologias, polarizações e crises sucessivas.”

Essa combinação de elementos — a serenidade do céu, a dureza da pedra e a violência do sangue — é justamente o que confere à obra seu poder simbólico. “Memória”, no contexto do surrealismo, não é apenas um exercício formal, mas um manifesto visual sobre a fragilidade daquilo que entendemos por lembrança, identidade e até mesmo beleza. A escultura ferida carrega a marca do tempo e da perda, mas permanece impassível, o que faz pensar sobre a maneira como o passado é, ao mesmo tempo, fixo e vulnerável a reinterpretações.

A ferida aberta na cabeça da escultura é, sem dúvida, o elemento mais inquietante da obra. Não é difícil associar essa imagem à ideia de trauma — aquilo que rompe a linearidade da memória, que deixa uma cicatriz nos registros do que vivemos. Magritte, como era de seu costume, não dá respostas fáceis. Ele apenas propõe a cena, sem indicar sua origem ou consequência. O espectador é quem precisa atribuir significado àquilo que vê, de acordo com sua própria bagagem emocional e intelectual.

A ferida como símbolo e a estética surreal

“Memória” surge em um período particularmente reflexivo para Magritte. Após a Segunda Guerra Mundial, a arte europeia passava por um momento de reavaliação. Muitos artistas se perguntavam sobre o papel da beleza em tempos de destruição. Magritte respondeu a isso não abandonando a estética tradicional, mas subvertendo-a. A escultura, ícone da eternidade clássica, agora sangra. Mas sangra de forma bela, silenciosa, com a leveza perturbadora de um sonho que incomoda ao acordar.

Além disso, a obra se encaixa perfeitamente na obsessão de Magritte por justapor o conhecido e o estranho. O céu azul remete imediatamente a outras de suas obras famosas, como “O Império das Luzes”, em que o contraste entre noite e dia cria uma sensação de paradoxo. Em “Memória”, essa contradição é interiorizada: o rosto inerte da escultura se opõe ao fluxo vivo do sangue. O eterno e o efêmero coexistem, sem explicação ou reconciliação.

Leia ou ouça também:  Vênus de Milo: a sensual e estranha escultura

Críticos de arte costumam ressaltar o caráter filosófico de Magritte, e “Memória” oferece um campo fértil para reflexões nietzschianas ou freudianas. É possível ver na ferida uma metáfora para o inconsciente ferido, para a repressão ou até para a ruptura entre razão e desejo. Mas, ao mesmo tempo, Magritte sempre resistiu a leituras fechadas. Para ele, a imagem valia mais pelo impacto do que pela interpretação definitiva.

Memória é um exemplo emblemático do metiê do belga Magritte (Foto: WahooArt)
Memória é um exemplo emblemático do metiê do belga Magritte (Foto: WahooArt)

Revisitar essa obra nos lembra que a arte de Magritte continua atual, especialmente em tempos em que a memória coletiva parece cada vez mais fragmentada, distorcida por tecnologias, polarizações e crises sucessivas. A escultura ferida de “Memória” talvez seja um retrato mais próximo do nosso presente do que do passado de Magritte. Ela carrega a serenidade artificial de um céu pintado, mas sangra por dentro, silenciosamente — como fazemos todos nós, convivendo com lembranças imperfeitas e verdades em conflito.

Não é exagero dizer que René Magritte antecipou, em seu silêncio enigmático, a angústia contemporânea de não saber exatamente o que fazer com as próprias lembranças. Em “Memória”, o surreal não é uma fuga: é um convite ao desconforto, à dúvida e, acima de tudo, ao pensamento. E é por isso que essa obra ainda fala tanto a quem a contempla.


Compartilhe este conteúdo com seus amigos. Desde já obrigado!

Facebook Comments

Anúncios
Pular para o conteúdo
Verified by MonsterInsights