Myra: arte ou pura provocação?
No olho do furacão artístico britânico dos anos 1990, poucos quadros causaram tanto estardalhaço quanto Myra, do pintor Marcus Harvey. A peça, apresentada em 1995, retrata o rosto de Myra Hindley — cúmplice dos assassinatos conhecidos como os “Moors Murders” nos anos 1960 — e, só por isso, já prometia polêmica. Mas Harvey foi além: compôs a imagem com milhares de impressões da mão de uma criança, em tinta preta e branca. Como quem mistura sacrilégio e ironia com a tinta, Harvey reencena o rosto da infame assassina usando o símbolo máximo da inocência infantil. Resultado? Confusão na galeria, protesto nas ruas e debate acalorado na imprensa.
A pergunta persiste, mesmo 30 anos depois: isso é arte ou só um tapa na cara do bom senso? A resposta — como em todo bom dilema estético — depende mais da sensibilidade (ou da insensibilidade) de quem vê do que de uma verdade. O quadro, afinal, não está tentando agradar, emocionar ou consolar. Está ali para incomodar. E incomoda com força. Durante sua exibição na Royal Academy of Arts, em Londres, a obra foi vandalizada duas vezes. Ativistas a atacaram com tinta e ovos. A imagem de Hindley era, e continua sendo, uma ferida aberta na memória coletiva britânica.
“Não se trata, portanto, de um erro isolado de julgamento ou de uma ousadia gratuita. É parte de um movimento mais amplo, que buscava redefinir o papel da arte contemporânea no Reino Unido pós-thatcherista.”
Mas o propósito de Harvey parece ter sido justamente esse: cutucar o trauma nacional com um pincel embebido em angústia coletiva. Ao escolher Hindley como musa, ele lança ao público uma pergunta amarga: o que nos choca mais — o crime em si ou a representação artística dele? A imagem de Myra Hindley, eternizada pela imprensa como a face do mal, foi transformada em um ícone pop-pós-moderno. O rosto perturbador ganhou uma aura quase sacra na moldura da galeria, como se fosse uma santa perversa canonizada pela cultura da provocação.
E isso incomoda não só o público comum, mas críticos, curadores e até artistas. Há quem veja em Myra uma denúncia sobre como a sociedade lida com monstros — principalmente quando são mulheres. Outros enxergam puro sensacionalismo, uma tentativa rasteira de chocar para subir no mercado da arte. E aí está o impasse.
Entre o martelo e a moldura
Marcus Harvey fazia parte da chamada geração “Young British Artists” (ou YBAs), um grupo que incluía Damien Hirst, Tracey Emin e Sarah Lucas — todos surgidos sob a batuta provocadora do colecionador Charles Saatchi, nos anos 90. Era uma arte que dava de ombros para o bom gosto e fazia questão de arrancar reações viscerais. A estética? Secundária. O impacto? Fundamental. Nesse contexto, Myra se encaixa como uma luva ensanguentada.
Não se trata, portanto, de um erro isolado de julgamento ou de uma ousadia gratuita. É parte de um movimento mais amplo, que buscava redefinir o papel da arte contemporânea no Reino Unido pós-thatcherista. Uma arte que deixava de ser contemplativa para se tornar confrontativa. A galeria virou campo de batalha. Os críticos, soldados. E o público, inevitavelmente, a trincheira onde tudo ricocheteia.
Mas há uma diferença entre provocar e apenas chocar. E é aí que muitos acusam Harvey de tropeçar. Porque, no fim das contas, a obra se apoia quase exclusivamente no histórico da retratada para obter relevância. Sem o rosto de Hindley, restaria o quê? Uma composição monocromática feita com carimbos de mão infantil? Bonito, talvez. Perturbador, não.
A força de Myra reside no simbolismo — e no atrevimento de transformar uma assassina de crianças numa peça de museu. Mas esse gesto pode ser visto como uma perversão estética, ou como um espelho cruel do culto à imagem, em que até o rosto do mal vira objeto de consumo e análise. Harvey não está retratando Hindley; está retratando a obsessão pública por Hindley. E nesse jogo de espelhos, todos nós estamos refletidos.
Outro ponto importante é que Myra surgiu num momento em que a arte britânica buscava romper com o establishment e se projetar como uma potência cultural internacional. Chocar era uma estratégia. E deu certo: os YBAs dominaram o noticiário cultural e consolidaram o Reino Unido como centro de experimentação artística. Mas ao fazer da dor um espetáculo, corre-se sempre o risco de banalizar o sofrimento real em nome de um discurso supostamente corajoso.
Trinta anos depois, a pergunta permanece viva porque o incômodo permanece fresco. Myra continua sendo exposta, debatida, atacada, defendida — o que, de certa forma, comprova sua potência artística. Afinal, arte que envelhece em silêncio não é arte, é decoração.

Harvey, com um quadro só, conseguiu o que muitos artistas não conseguem em toda uma carreira: entrou para o debate público, gerou indignação e obrigou as pessoas a se perguntarem o que é aceitável no espaço da arte. Se isso é genialidade ou oportunismo barato, ainda se discute. Mas o fato de ainda se discutir já responde, em parte, à pergunta do título.
Arte ou provocação? Talvez os dois. Ou talvez, como sempre, nenhuma das duas coisas — apenas o reflexo distorcido do nosso próprio desconforto diante do mal.
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