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O Escafandro e a Borboleta: lições

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Em um mundo que celebra a velocidade, a produtividade e os corpos perfeitos, O Escafandro e a Borboleta chega como uma bofetada em câmera lenta no rosto da pressa. Dirigido por Julian Schnabel e lançado em 2007, o filme adapta o livro homônimo de Jean-Dominique Bauby, ex-editor da revista Elle, que, aos 43 anos, sofreu um AVC devastador, resultando em uma síndrome de encarceramento. Ele ficou totalmente paralisado, exceto pelo movimento do olho esquerdo — e foi com esse olho que escreveu um livro inteiro. Um parágrafo de cada vez. Uma piscada por letra.

O título é poético e brutal: o “escafandro” representa o corpo que se tornou cárcere; a “borboleta”, a mente que continua livre, sonhando, lembrando, voando. Schnabel nos leva para dentro dessa prisão invisível de Bauby com uma câmera que começa onde os olhos do protagonista param. A maior parte do filme é vista de sua perspectiva. A tela embaça, pisca, treme, prende — como um olho cansado de se fazer entender no mundo dos falantes. É claustrofóbico, perturbador, e absolutamente necessário.

“É claro que há quem veja o filme como um exercício de autoajuda travestido de cinema de arte. Mas isso seria reduzi-lo a um manual de superação — e ele é mais do que isso.”

O que poderia facilmente ser mais um melodrama hospitalar transforma-se em um tratado sobre a imaginação, a memória, a linguagem, a arrogância humana e o amor pelas pequenas coisas. Um telefonema interrompido. Um beijo do filho. Uma lembrança inventada. Uma mulher perdida. É um filme que faz o espectador pensar no que desperdiça, no que ignora, no que cala. E, mais que isso, no que resta quando tudo vai embora — menos o pensamento.

É impossível ignorar o absurdo da história real que inspira o longa. Um homem que viveu entre os editoriais de moda, cercado por mulheres lindas, festas, e piadas irônicas sobre a vida, subitamente se vê reduzido à mímica da pálpebra. Não há metáfora que dê conta disso — e ainda assim, Schnabel e Bauby tentam, sem piedade ou autopiedade.

A paralisia como espelho social

O filme de Schnabel não é só sobre a tragédia de Bauby — é sobre todos nós. Cada cena funciona como uma crítica sutil à nossa própria “síndrome de encarceramento”: o vício em telas, o empobrecimento da linguagem, a atrofia da escuta, a brutalidade dos diagnósticos apressados. Vivemos com todos os músculos em funcionamento, mas nos comunicamos com menos precisão e profundidade do que Bauby com seu olho. Pior: não ouvimos.

A maneira como a equipe médica se comunica com ele é outro ponto de fricção. Quando não é fria, é condescendente. O alfabeto que usa a frequência das letras em francês para compor palavras piscando um olho virou símbolo da inteligência humana operando sob escombros. Mas não é só a genialidade da técnica que impressiona: é o tempo. Sim, o tempo. Bauby levava cerca de dois minutos para formar uma palavra. Imagine escrever um livro inteiro. Imagine fazer isso depois de uma vida feita de luxo e rapidez. E nós, que abandonamos textos por causa de um parágrafo longo demais.

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Schnabel filma com compaixão, mas sem enfeites. A beleza estética — com fotografia do mestre Janusz Kamiński, colaborador de Spielberg — nunca é gratuita. Os enquadramentos distorcidos, o uso de luz natural, os reflexos… Tudo ecoa o estado interior do personagem. É como se o próprio mundo se contorcesse para tentar traduzir sua agonia silenciosa. Em vez de música de fundo que manipula lágrimas, há silêncio, ruído hospitalar, respiração ofegante. E quando a música entra — como La Mer, de Charles Trenet — ela não consola: ela corta.

Mas O Escafandro e a Borboleta também carrega humor. Um humor triste, elegante, melancólico. Em certo momento, Bauby brinca com sua situação, imaginando como seria uma fuga do hospital. Em outro, flerta com a enfermeira, com o mesmo charme de quando era editor. Essa irreverência frágil, quase insolente, é o que torna o filme mais humano. Ele não quer piedade. Quer ser ouvido.

É claro que há quem veja o filme como um exercício de autoajuda travestido de cinema de arte. Mas isso seria reduzi-lo a um manual de superação — e ele é mais do que isso. É sobre linguagem e dignidade. Sobre uma mente que se recusa a morrer. Sobre como até mesmo o silêncio pode ser um grito — e um grito bonito.

O Escafandro e a Borboleta é uma bofetada dolorida em câmera lenta (Foto: Cinema 10)
O Escafandro e a Borboleta é uma bofetada dolorida em câmera lenta (Foto: Cinema 10)

Em tempos de redes sociais dominadas por frases motivacionais plastificadas, O Escafandro e a Borboleta mostra que a verdadeira inspiração não se dá em frases feitas, mas em histórias que incomodam. Que tiram o fôlego. Que deixam você paralisado — mas de consciência.

O que Jean-Dominique Bauby nos entrega, com a leveza de uma borboleta e o peso de um escafandro, é a lembrança de que pensar ainda é o maior ato de liberdade. Mesmo que você só consiga piscar.


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