Quem mexeu no meu queijo?: bullshit?
Escrito pelo médico e palestrante motivacional Spencer Johnson, “Quem mexeu no meu queijo?” foi lançado em 1998 com a promessa de ensinar, em poucas páginas e muita alegoria, como lidar com mudanças inevitáveis na vida e no trabalho. A obra, que mais parece um manual de autoajuda embalado em fábula infantil, virou febre corporativa no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Líderes, coaches e executivos distribuíam exemplares como se fossem antídotos contra a resistência a novas estratégias e cortes de pessoal — e, sejamos francos, muitas vezes era exatamente para isso que o livro servia.
A premissa é simples: quatro personagens (dois ratos e dois “humaninhos”) vivem em um labirinto, correndo atrás de queijo, metáfora para qualquer objetivo desejado — dinheiro, emprego, amor, status. Um dia, o queijo acaba. Os ratos rapidamente vão atrás de outra fonte, adaptando-se à nova realidade, enquanto um dos “humaninhos” hesita, reclama e sofre, até perceber que precisa se mexer. Moral da história: mudanças acontecem, aceite, mexa-se, adapte-se.
“Além disso, o formato do livro, que se vende como “fábula para todas as idades”, esconde a intencionalidade mercadológica. Ele é curto, barato de produzir, fácil de ler em um voo ou num coffee break — um produto perfeito para o consumo rápido e descomplicado, quase como um fast-food motivacional.”
Johnson embrulha essa lição básica em uma narrativa que poderia caber numa apostila de ensino fundamental. O sucesso, no entanto, veio da embalagem corporativa: empresas adoram histórias que simplificam a vida em slogans, que permitem reduzir dramas humanos complexos a metáforas fáceis de digerir. Não é difícil entender por que o livro foi transformado em leitura obrigatória em treinamentos de RH: em vez de discutir o contexto real das mudanças — como reestruturações, terceirizações ou cortes de benefícios —, bastava dizer: “o queijo mudou, acostume-se”.
O problema é que, ao despolitizar e descontextualizar as transformações, a obra vira um produto de conveniência ideológica. Quem recebe a mensagem tende a absorvê-la de forma passiva, como se resistir a mudanças fosse sempre um erro ou um sinal de atraso mental. A metáfora, sedutora na simplicidade, mascara que nem toda mudança é benéfica ou inevitável; algumas são escolhas deliberadas de quem está no topo do labirinto, mexendo no queijo dos outros para aumentar o próprio estoque.
A pedagogia do queijo e a ideologia do labirinto
O que Johnson vende é mais do que um conselho de vida — é um molde mental. Ele convida o leitor a aceitar que o labirinto já está dado, que as regras não se discutem, e que o máximo que podemos fazer é nos mover rápido para encontrar outro pedaço de queijo. É o equivalente literário de dizer: “não reclame da empresa, adapte-se a ela, ou será deixado para trás”. Em termos empresariais, é um recado elegante para funcionários: não questionem a mudança, corram.
Claro, é possível defender que a flexibilidade e a capacidade de adaptação são virtudes. E são mesmo. Mas virtude não é sinônimo de submissão cega. Quando a obra é usada como ferramenta corporativa, ela omite a dimensão crítica: nem toda mudança merece ser abraçada, e nem todo atraso em reagir é burrice. Às vezes, hesitar é uma forma de avaliar riscos, ponderar alternativas e, principalmente, questionar a justiça da nova configuração do labirinto.
Além disso, o formato do livro, que se vende como “fábula para todas as idades”, esconde a intencionalidade mercadológica. Ele é curto, barato de produzir, fácil de ler em um voo ou num coffee break — um produto perfeito para o consumo rápido e descomplicado, quase como um fast-food motivacional. O leitor não sai exatamente mais preparado para lidar com o mundo; sai apenas mais disposto a aceitar que ele mude sem explicações.
Há também o efeito cultural: “Quem mexeu no meu queijo?” criou uma espécie de dialeto no mundo corporativo. Frases como “seu queijo mudou” passaram a ser atalhos para encerrar discussões, como se qualquer debate fosse perda de tempo diante da suposta urgência de se mover. O que pode parecer pragmatismo é, na verdade, um corte de diálogo.
Reler “Quem mexeu no meu queijo?” com distanciamento histórico revela tanto sobre a mentalidade empresarial dos anos 1990 quanto sobre as estratégias de controle emocional no trabalho. Ele continua sendo um livro funcional para inspirar mudanças pessoais rápidas, mas também um exemplo cristalino de como a autoajuda corporativa pode servir para anestesiar resistências legítimas.

A moral final talvez seja outra: não basta saber que o queijo se move. É preciso também perguntar quem o moveu, por quê, e se o novo pedaço vale o esforço da corrida. Porque, no fim, ratos podem até correr mais rápido, mas humanos têm a vantagem de poder redesenhar o labirinto — se quiserem.
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