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Realidade: a revista que quebrou tabus

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Nos anos 1960, enquanto o Brasil oscilava entre a esperança desenvolvimentista e a repressão de um Regime Militar ainda em fase de consolidação, surgiu uma publicação que não se contentava em seguir o roteiro previsível da imprensa nacional. Realidade, lançada pela Editora Abril em abril de 1966, nasceu com um propósito declarado: aprofundar temas que as revistas e jornais tradicionais evitavam, dando ao leitor reportagens extensas, densas, bem escritas e visualmente ousadas. Era quase um jornalismo de romance, com fôlego narrativo e apuro gráfico, algo que destoava do consumo rápido de notícias a que o público estava acostumado.

O impacto foi imediato. Realidade trouxe para o centro da mesa assuntos como desigualdade social, miséria no sertão, prostituição, drogas, minorias, política internacional e sexualidade — isso numa época em que a censura tinha o dedo leve para cortar, e pesado para punir. O formato era igualmente inovador: matérias longas, linguagem envolvente, fotografias de grande impacto, infográficos e design que não subestimava o olhar do leitor. A revista tratava seu público como adulto pensante, algo que, convenhamos, nem sempre é prioridade na imprensa.

“A ironia é que, muito do que Realidade publicou nos anos 60 e 70 ainda soa atual — ou pior, urgente. Temas como pobreza, violência, desigualdade, direitos civis e crise política continuam pulsando no noticiário, às vezes tratados com a mesma superficialidade que a revista combatia.”

Não era apenas informação, era narrativa com ambição literária. Seus repórteres passavam semanas — às vezes meses — acompanhando personagens, investigando histórias, vivendo o assunto. O resultado eram textos com profundidade e emoção, que convidavam o leitor a mergulhar. Em um Brasil que se modernizava a passos trôpegos, mas que ainda tinha a mentalidade das “boas famílias”, Realidade fez o que o nome prometia: esfregou no rosto da classe média urbana aquilo que ela preferia não ver.

Naturalmente, isso não passou incólume. O Regime Militar desconfiava do tom crítico e da liberdade editorial; conservadores se incomodavam com pautas consideradas imorais; empresários temiam o desconforto que as matérias provocavam nos anunciantes. A revista sobreviveu apenas até 1976 em seu formato original — depois foi descaracterizada, virando algo mais palatável e menos combativo. Mas o estrago — ou o legado, dependendo do ponto de vista — já estava feito.

Jornalismo com alma e nervo

O que diferenciava Realidade não era apenas o tema, mas a maneira como era contado. As reportagens possuíam estrutura quase literária: o “lede” (abertura) fisgava, a narrativa fluía com ritmo, as descrições eram detalhadas, e o texto não tinha medo de provocar. Não era incomum encontrar ironia fina, crítica velada (ou nem tão velada) e uma dose de indignação calculada. Era jornalismo com nervo, onde a objetividade se combinava com a subjetividade de quem acreditava que informar também é tomar posição.

Essa abordagem influenciou gerações de jornalistas. Muitos que hoje são nomes respeitados na imprensa brasileira passaram por suas páginas ou se inspiraram nelas. Realidade foi, em certo sentido, a ponte entre a tradição do jornalismo investigativo internacional — como o New Journalism de Tom Wolfe e Gay Talese — e a necessidade de retratar o Brasil com todas as suas contradições.

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Ao mesmo tempo, a revista pagou caro por essa ousadia. A ditadura não tolerava questionamentos diretos, e os anunciantes não gostavam de ser lembrados de que viviam num país de contrastes brutais. Com o tempo, a pressão política e comercial minou a autonomia editorial. O que antes era uma publicação disposta a romper tabus transformou-se num produto diluído, mais preocupado em não incomodar do que em provocar reflexão.

Hoje, quase 60 anos após seu lançamento, Realidade continua sendo lembrada como exemplo de jornalismo de profundidade num país que, infelizmente, tem memória curta. Seus arquivos são relíquias para pesquisadores, jornalistas e curiosos que querem entender como era possível fazer grandes reportagens num tempo de censura explícita.

A ironia é que, muito do que Realidade publicou nos anos 60 e 70 ainda soa atual — ou pior, urgente. Temas como pobreza, violência, desigualdade, direitos civis e crise política continuam pulsando no noticiário, às vezes tratados com a mesma superficialidade que a revista combatia. Talvez o maior tabu que Realidade tenha quebrado foi mostrar que o jornalismo não precisa ser bajulador para ser relevante, e que o leitor pode, sim, lidar com a verdade sem açúcar.

O eterno Edson Arantes do Nascimento na capa da primeira Realidade (Foto: Google)
O eterno Edson Arantes do Nascimento na capa da primeira Realidade (Foto: Google)

No fim das contas, sua história também serve como alerta: a liberdade editorial é sempre frágil, e a tentação de agradar ao poder ou ao mercado nunca desaparece. Realidade provou que é possível resistir — por um tempo. Mas também mostrou que, no Brasil, ousadia na imprensa costuma ter prazo de validade. O que fica é a lembrança de que, quando o jornalismo assume o risco de ser inconveniente, ele pode fazer história. E, às vezes, até mudar o rumo dela.


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