Space Oddity: a melancolia no espaço
Era 1969. A Terra estava em ebulição: Woodstock se preparava para reunir hippies encharcados em ácido e utopia, o homem prestes a pôr os pés na Lua, e a Guerra Fria dava calafrios em meio mundo. Foi nesse cenário que David Bowie lançou “Space Oddity”, a canção que nos apresentou Major Tom, um astronauta isolado no espaço, a milhas e milhas de qualquer conexão humana. Mas ao contrário do espírito ufanista da NASA ou da histeria pop que cercava Neil Armstrong, Bowie entregava o oposto: um hino à alienação, um sussurro triste em meio à estática da comunicação espacial.
“Ground control to Major Tom”, diz a primeira linha, como quem inicia uma ligação que sabemos que vai cair. A música evolui com tons cósmicos e melodias que imitam flutuação, mas o que nos prende é o subtexto devastador: Major Tom está indo para o espaço, mas também está indo embora de tudo — da Terra, do amor, da segurança. A cápsula está funcionando perfeitamente, mas o homem dentro dela está quebrando por dentro. Em meio a timbres psicodélicos e efeitos de estúdio quase teatrais, Bowie já anunciava a era da depressão silenciosa vestida de conquista tecnológica.
“E Bowie, com sua genialidade metalinguística, não encerrou a história aqui. Anos depois, em “Ashes to Ashes” (1980), ele nos informa que Major Tom virou “um junkie”. O herói espacial virou viciado, decadente, marginalizado.”
Se os Estados Unidos celebravam o poder fálico do foguete Saturn V, Bowie oferecia um outro olhar: o da impotência emocional diante da imensidão. Não há foguete que nos salve da solidão, nem traje pressurizado que proteja contra o vácuo existencial. A viagem espacial, aqui, não é aventura, mas metáfora para o isolamento humano, algo que, curiosamente, continua extremamente atual — em tempos de redes sociais e Inteligência Artificial, nunca estivemos tão conectados e tão sozinhos.
“Tell my wife I love her very much… she knows.” Essa linha atinge como um tiro de tranquilizante no coração. Bowie nos oferece um herói que não está salvando ninguém, não está explorando Marte, não está destruindo alienígenas: ele apenas desaparece aos poucos, de maneira passiva, enquanto a Terra se torna “azul” e ele se perde na imensidão escura. “There’s nothing I can do,” repete ele. É uma despedida tão quieta quanto devastadora.
O herói não volta, e isso é o ponto
Major Tom não retorna como um Ulisses moderno, não sobrevive para contar a história, nem serve de mártir para a próxima missão. Ele apenas deixa de existir — talvez num buraco negro, talvez dentro de si. O controle na Terra insiste em chamá-lo, mas não há mais retorno. É a tragédia do abandono, não pelo outro, mas por si próprio. E é aqui que a canção se torna mais que ficção científica: é psicanálise sonora.
Nosso astronauta é o símbolo perfeito do homem moderno: tecnicamente equipado, socialmente celebrado, emocionalmente anulado. A cápsula espacial virou escritório, virou tela de computador, virou vida digital. Todos somos Major Tom agora — flutuando, assistindo à Terra pela janela, esperando por uma mensagem que já não chega.
E Bowie, com sua genialidade metalinguística, não encerrou a história aqui. Anos depois, em “Ashes to Ashes” (1980), ele nos informa que Major Tom virou “um junkie”. O herói espacial virou viciado, decadente, marginalizado. E por mais que isso pareça apenas mais uma provocação glam rock, há uma crítica crua embutida: o sistema exalta os heróis até que eles se tornem inconvenientes. Depois, os empurra para a sarjeta. A sociedade que envia homens ao espaço é a mesma que os abandona quando falham.
A ressonância cultural de “Space Oddity” foi tamanha que a canção virou trilha para mil metáforas. Tocou em funerais, em estações espaciais de verdade, em filmes de ficção científica e, ironicamente, em comerciais publicitários que não entenderam nada. Em 2013, o astronauta canadense Chris Hadfield cantou a música da Estação Espacial Internacional, num dos momentos mais emblemáticos de apropriação artística pela ciência — ou seria da ciência pela arte? Mesmo que involuntariamente, Hadfield reforçou a beleza melancólica do voo solitário, e Major Tom ganhou carne e osso por alguns minutos.
Claro, Bowie não foi o único a poetizar a vastidão cósmica. Pink Floyd, Sun Ra, Kraftwerk, Björk, todos já surfaram nas ondas gravitacionais da simbologia espacial. Mas nenhum foi tão direto ao ponto: a conquista do espaço exterior sempre esconde o desmoronamento do espaço interior. E Bowie fez isso com simplicidade desconcertante, no auge de seus 22 anos.
Em tempos atuais, com o bilionário Elon Musk brincando de corrida espacial privatizada, e Jeff Bezos tratando foguetes como brinquedos fálicos de domingo, a canção ganha camadas novas — quase irônicas. Quem é Major Tom hoje? Um astronauta profissional? Um entregador de aplicativo? Um youtuber tentando fazer sentido da própria relevância digital? Talvez seja apenas qualquer um de nós, perdidos entre a realidade e a performance, entre o Wi-Fi e o vazio.

No fim das contas, “Space Oddity” é menos sobre espaço sideral e mais sobre espaço pessoal. Não é uma ode à tecnologia, mas um réquiem para a intimidade. E o mais triste de tudo: a Terra continua azul, e ninguém ouve Major Tom.
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