“Tartufo”: uma peça sempre atual
Poucas obras da dramaturgia mundial atravessam os séculos com a força e a atualidade de Tartufo, a célebre peça escrita por Molière em 1664. Mais de 350 anos depois de sua estreia, o texto ainda reverbera de maneira inquietante, principalmente porque escancara um tipo humano que, infelizmente, nunca saiu de cena: o hipócrita travestido de virtude.
O protagonista Tartufo, um falso devoto que se infiltra na casa do rico burguês Orgon, é o arquétipo do aproveitador moralista. Fingindo extrema piedade, ele conquista a confiança cega de seu anfitrião e começa a tramar a destruição da família para benefício próprio. Não à toa, quando foi apresentada pela primeira vez, a peça sofreu censura pesada por parte da Igreja e da aristocracia. O retrato impiedoso que Molière pintou do falso moralismo religioso era ousado demais para o seu tempo — e, ironicamente, continua sendo ousado ainda hoje.
“Se antes o disfarce vinha em forma de falsas orações e gestos piedosos, hoje ele aparece na forma de discursos progressistas ou conservadores adaptados à conveniência de quem os profere.”
Mais do que um ataque à hipocrisia religiosa, Tartufo funciona como um retrato dos mecanismos da mentira social. Em qualquer época, sempre haverá aqueles que se utilizam de discursos éticos ou religiosos para obter poder, dinheiro ou status. Molière, que morreu poucos anos após escrever essa e outras de suas grandes obras (O Doente Imaginário, O Misantropo, O Burguês Fidalgo), sabia que a comédia, quando bem feita, carrega verdades amargas sob o riso.
Mesmo sendo uma peça do século XVII, os diálogos ágeis, a construção de personagens e as situações criadas por Molière mantêm frescor impressionante. Isso explica por que Tartufo continua sendo montado regularmente em teatros do mundo inteiro, atravessando contextos sociais, políticos e religiosos distintos. No fundo, trata-se de um estudo sofisticado sobre o autoengano e a cegueira voluntária. Afinal, Orgon — o patriarca enganado — prefere fechar os olhos para os avisos de todos ao seu redor, simplesmente porque quer acreditar no falso devoto. A peça, portanto, não é só sobre o vigarista, mas também sobre aqueles que decidem ser enganados, mesmo diante de todas as evidências contrárias.
A hipocrisia como vício eterno
Se há algo que torna Tartufo sempre atual é a constatação de que a hipocrisia é um vício que atravessa gerações e se adapta a qualquer cultura. Não é preciso ir muito longe: em tempos de redes sociais, discursos falsamente virtuosos se multiplicam como nunca. Pessoas, empresas e instituições frequentemente se apresentam com um verniz de integridade que desmorona no primeiro sinal de crise. Tartufo não é apenas o outro; é uma possibilidade latente em qualquer um, o lado obscuro da necessidade humana de aceitação e poder.
No campo político, então, a peça soa quase como uma profecia. O mundo contemporâneo está repleto de “Tartufos” — personagens públicos que vendem discursos moralistas e inflamados enquanto escondem interesses pessoais inconfessáveis. A peça escancara a facilidade com que muitos são seduzidos não pela verdade, mas por aquilo que querem ouvir. Tartufo não convence com argumentos sólidos, mas com encenações calculadas, lágrimas falsas e afetos manipulados.
Por isso mesmo, Tartufo continua sendo leitura obrigatória não apenas para amantes do teatro, mas também para quem deseja compreender os mecanismos da manipulação humana. Sua força reside na combinação rara de humor, crítica social e perspicácia psicológica.

É curioso perceber que, ao longo dos séculos, os instrumentos e as linguagens da dissimulação mudaram — mas os vícios humanos são, essencialmente, os mesmos. Se antes o disfarce vinha em forma de falsas orações e gestos piedosos, hoje ele aparece na forma de discursos progressistas ou conservadores adaptados à conveniência de quem os profere. A essência, no entanto, não mudou: continua sendo um jogo de máscaras, onde a ingenuidade de uns se transforma em arma para os outros.
“Tartufo” é uma peça que, ao mesmo tempo que diverte, incomoda. E é justamente essa sua função: expor, sem panfletarismo, o ridículo humano disfarçado de virtude. Em tempos de narrativas forjadas e falsos salvadores, Molière ainda nos oferece uma lição preciosa: desconfie sempre de quem se apresenta como puro demais. Provavelmente, é o Tartufo da sua vez.
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