Zezé Motta: uma artista realmente completa
Zezé Motta é daquelas presenças que impõem respeito antes mesmo de pronunciar uma palavra. Sua trajetória se espalha por tantos territórios — cinema, teatro, televisão, música, ativismo — que qualquer tentativa de resumir sua vida em um parágrafo soa como reduzir o oceano a uma garrafinha de água mineral. Estamos falando de uma intérprete que não apenas “fez carreira”, mas que escreveu capítulos decisivos na história da cultura brasileira. Ela é, de fato, uma dessas raridades: uma artista que desafia a palavra “limite”.
Nascida em Campos dos Goytacazes e criada em São Paulo, Zezé cresceu em um país que insistia em limitar espaços para artistas negros. O detalhe é que ela nunca aceitou esse confinamento. Com talento, inteligência e uma ousadia que beirava a necessidade, abriu portas que muitos juravam estar trancadas a ferro. E fez isso sem pedir licença, porque sabia que licença, se fosse esperar, jamais viria. Em um país ainda tão amarrado às suas próprias contradições raciais, a presença de Zezé Motta sempre foi um ato político em si.
“O tempo, que costuma ser cruel com tantos artistas, parece ter com ela uma relação de respeito. Aos 81 anos, Zezé continua a atuar, cantar, discursar e se reinventar. Não há sinais de obsolescência.”
No cinema, eternizou-se em “Xica da Silva” (1976), de Cacá Diegues, papel que a transformou em símbolo e escândalo. Ali, não só interpretava uma personagem histórica, como expunha a ferida aberta do Brasil colonial e seu DNA escravocrata. Foi capa de revistas, assunto em rodas conservadoras e bandeira em debates progressistas. Não há como negar: Zezé carregou em seus ombros o peso e o brilho de ser, simultaneamente, ícone erótico e referência política. Algo que muitos queriam reduzir, mas que ela expandiu com inteligência e garra.
Na televisão, construiu uma galeria de personagens que escorregam entre o popular e o sofisticado. Participou de novelas e séries que, em outra mão, poderiam soar irrelevantes, mas que, com seu magnetismo, ganhavam uma densidade inesperada. É daquelas atrizes que conseguem dar dignidade até a um papel que o autor pensou como “coadjuvante simpática”. Zezé, sem arrogância, mostra como se faz.
Música, militância e permanência
Se apenas como atriz já seria monumental, Zezé ainda arrumou espaço para ser cantora. E aqui não se trata de um capricho lateral, mas de uma carreira sólida, com álbuns que transitam entre a MPB, o samba e o soul. Sua interpretação é quente, densa, carregada de vida — às vezes até mais vida do que a própria canção aguenta. Há quem diga que sua voz não é “perfeita” segundo critérios técnicos. Mas quem se importa? Perfeição é uma palavra fria. O que Zezé entrega é carne, sentimento, humanidade. E isso, convenhamos, é mais raro.
Mais rara ainda é sua militância constante. Ao longo das décadas, Zezé não se escondeu quando o assunto era racismo, desigualdade, machismo ou o esquecimento de artistas negros. Ela fundou instituições, levantou debates, enfrentou olhares atravessados. Não se limitou a ser “apenas um rosto bonito da diversidade”. Tornou-se uma voz incômoda e necessária. Aquelas que incomodam porque dizem o que precisa ser dito — e não o que os ouvidos querem ouvir.
O tempo, que costuma ser cruel com tantos artistas, parece ter com ela uma relação de respeito. Aos 81 anos, Zezé continua a atuar, cantar, discursar e se reinventar. Não há sinais de obsolescência. O que há é uma maturidade que só reforça sua potência. Quando aparece em cena, ainda hoje, rouba a atenção sem esforço. Não porque queira, mas porque a sua energia artística é quase gravitacional.
É curioso pensar que, em um país tão afeito ao esquecimento, Zezé Motta tenha resistido a esse destino ingrato. Parte disso se deve à sua versatilidade, mas outra parte, talvez maior, se deve à sua teimosia. Ela recusou-se a ser descartável. Fez-se relevante em cada década, em cada mídia, em cada frente de batalha cultural.
E se ainda há quem a subestime, talvez isso seja mais um reflexo da mediocridade de certos olhares do que qualquer falha de sua trajetória. Afinal, o Brasil adora celebrar artistas “completos” quando vêm de fora, mas hesita em reconhecer os seus. Zezé Motta, no entanto, não precisa de consagrações tardias. Ela já é patrimônio vivo.

No fundo, a pergunta não é se Zezé é uma artista completa — isso já está dado. A questão é: o Brasil está à altura de uma artista como Zezé Motta? Porque, cá entre nós, não basta ela ser completa; é preciso que o país aprenda a enxergar e valorizar completudes. E aí, convenhamos, ainda estamos no ensaio.
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