Like a Stone: grande momento do rock
Há músicas que parecem atravessar o tempo com a serenidade de um monumento, resistindo à ferrugem cultural e à liquidez pop que transforma sucessos em descartáveis embalagens sonoras. “Like a Stone”, lançada em 2002 pelo Audioslave, é uma dessas obras que não apenas sobreviveram, mas prosperaram na memória coletiva. Ainda hoje ela soa como um epitáfio roqueiro entoado com a dor e a fúria de um tempo em que o rock mainstream respirava com alguma dignidade. É impossível não lembrar do impacto inicial: uma banda formada por ex-integrantes do Rage Against the Machine — Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk — ao lado de Chris Cornell, a voz mais visceral saída dos anos 90.
“Like a Stone” é, em essência, um lamento existencial, um réquiem pessoal que só poderia ter vindo da garganta de Cornell. A letra fala de solidão, de espera por algo além da vida, de uma espécie de prece sem altar fixo, destinada a qualquer divindade disposta a ouvir. Não é preciso ser religioso para sentir o peso espiritual do refrão. A canção traduz um desejo de transcendência, mas sem ilusões fáceis. Cornell cantava como quem não pedia milagres, mas aceitava a tragédia como única certeza. Um rock de arena que não cai no simplismo da catarse barulhenta.
“Do ponto de vista cultural, a faixa também ganhou novas camadas após a morte de Chris Cornell em 2017. O que antes era um lamento metafísico transformou-se em testamento póstumo, como se ele tivesse escrito o próprio epitáfio anos antes de seu fim.”
A produção, assinada por Rick Rubin, mantém-se minimalista e direta: uma batida seca, o baixo pulsando em tom soturno, a guitarra de Morello alternando entre riffs cortantes e solos que parecem sussurros metálicos em vez de pirotecnia. O resultado é uma canção que parece suspensa no ar, como pedra que não cai — talvez seja esse o mistério do título, esse paradoxo de leveza e peso que se enrosca na mente do ouvinte. Não por acaso, tornou-se o maior hit da banda, ultrapassando as barreiras do rádio rock para se tornar peça quase obrigatória em qualquer lista de “clássicos dos anos 2000”.
Mas a força de “Like a Stone” não está apenas em sua construção musical, mas em seu contexto histórico. O início dos anos 2000 foi um período de entressafra no rock: o grunge havia se esgotado, o nu metal já mostrava seus sinais de desgaste, e o pop assumia com voracidade as paradas. O Audioslave surgiu como uma espécie de sobrevivente de guerras passadas, carregando cicatrizes de Seattle e de Los Angeles, mas ainda disposto a dizer algo relevante. E disse.
Cornell, Morello e a reinvenção do rock pós-2000
“Like a Stone” representou não apenas a fusão de estilos, mas a possibilidade de um novo fôlego para o rock. Cornell trouxe a herança lírica e emocional do Soundgarden, Morello injetou sua guitarra experimental que transformava cabos e pedais em armas de invenção sonora, e o restante da banda segurou a base rítmica com a precisão de quem já havia incendiado palcos ao lado de Zack de la Rocha. Era um casamento improvável, quase artificial, mas que funcionou.
Do ponto de vista cultural, a faixa também ganhou novas camadas após a morte de Chris Cornell em 2017. O que antes era um lamento metafísico transformou-se em testamento póstumo, como se ele tivesse escrito o próprio epitáfio anos antes de seu fim. Não foram poucos os fãs que passaram a ouvir “Like a Stone” como despedida antecipada, e essa leitura melancólica só fortaleceu o mito. É o tipo de ironia cruel que o rock sempre soube administrar: a glória e a tragédia andam de mãos dadas, como se a autenticidade dependesse de um pacto sombrio com o abismo.
No entanto, reduzir a faixa a uma mera homenagem fúnebre seria cometer injustiça. Em 2025, ela segue viva, pulsante, tocando em rádios, playlists e, sobretudo, em cabeças que recusam aceitar que o rock morreu. A canção é testemunho de que ainda é possível conjugar intensidade e simplicidade, emoção e técnica, sem cair na armadilha da caricatura. O rock contemporâneo talvez esteja fragmentado em nichos digitais, mas “Like a Stone” lembra que, em algum momento recente, a música de guitarras ainda conseguia unir multidões em um só refrão.
É claro que não faltam vozes cínicas a dizer que o Audioslave nunca passou de um “projeto paralelo de luxo”, sem a força revolucionária do Rage Against the Machine ou a densidade inovadora do Soundgarden. Talvez. Mas até os mais duros críticos precisam admitir que, com uma única faixa, a banda esculpiu um monumento sólido o suficiente para atravessar décadas. Nem todas as bandas paralelas conseguem tal feito; muitas morrem no hiato em que nasceram. O Audioslave, com “Like a Stone”, deixou uma cicatriz permanente na paisagem sonora do século XXI.

No fim das contas, o grande momento do rock, aqui, não está apenas em riffs ou notas, mas naquilo que a música provoca: reflexão, catarse, identificação. “Like a Stone” não é hino de rebelião, não é trilha para a festa; é o som que acompanha a insônia, o vazio, a espera. Um clássico não porque vendeu milhões ou ocupou paradas, mas porque conseguiu fazer com que cada um de nós se sentisse, ao menos por quatro minutos, de pedra e de carne ao mesmo tempo.
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