Taxi Driver: sinais invisíveis da guerra
Há filmes que atravessam décadas como vultos mal resolvidos, insistindo em reaparecer quando menos se espera. Taxi Driver é um deles. Martin Scorsese, ainda jovem e faminto, filmou não apenas um taxista à deriva em Nova York, mas um espelho rachado da alma urbana. Travis Bickle (Robert De Niro) é um ex-fuzileiro que, ao voltar da guerra, encontra uma cidade que o desconcerta mais do que qualquer campo de batalha real. Ele não enfrenta inimigos visíveis ou trincheiras lamacentas. Seu Vietnã está nas esquinas, nos becos, nos olhares indiferentes da metrópole que fervilha enquanto ele tenta decifrar o sentido de existir.
Travis não dorme. E quem não dorme passa a ver demais. Seus turnos noturnos, como taxista que aceita qualquer corrida, funcionam como uma jornada pelas mazelas da cidade: violência, prostituição, drogas, solidão, desespero. Mas é a maneira como ele enxerga tudo que importa. Scorsese não faz documentário social — ele cria uma lente febril. A decadência urbana que Travis observa é quase uma projeção de sua própria mente atritada, esfolada por lembranças de guerra e pela sensação constante de não pertencimento. Ele não sabe mais onde termina o caos externo e onde começa sua própria fragmentação.
“Taxi Driver continua atual porque nossa era segue produzindo os mesmos homens cansados, isolados, deslocados. Cada metrópole contemporânea é uma nova Nova York de 1976: luminosa, barulhenta, cheia até a borda de solidão. Travis é um fantasma que não descansa.”
Há algo profundamente moderno nisso. Travis é o homem que volta de uma guerra e encontra outra — silenciosa, psicológica, cotidiana — estampada nos neons da cidade. O pós-guerra, aqui, não é comemorado. Não há desfile militar. O que há é isolamento. Uma solidão tão grossa que se torna personagem. O táxi que ele dirige é seu submarino amarelo às avessas: não o resgata, mas o afunda lentamente. E a cada noite, ele se convence de que existe uma sujeira moral que precisa ser eliminada — mas, como toda boa tragédia, o inimigo não está onde ele imagina.
A obsessão de Travis por “limpar” a cidade não é sobre ordem social, mas sobre tentar encontrar lugar para si num mundo que o rejeita. Ele se julga mais lúcido do que os demais, mas sua lucidez é febril, quase delirante. A cena do espelho — “Are you talkin’ to me?” — tornou-se ícone, mas é também o ápice dessa conturbada busca de identidade. Ele fala com a própria imagem porque já não encontra mais ninguém que reconheça sua existência.
A cidade como personagem e cúmplice
Nova York em Taxi Driver não é apenas cenário. É organismo vivo, que respira, pulsa, transpira. A câmera de Scorsese desliza pelas ruas com o mesmo cansaço latejante de Travis. É como se o filme quisesse dizer: o mundo moderno não mata rápido — ele desgasta. Cada letreiro luminoso é uma promessa de alegria que nunca se cumpre. Cada sombra esconde uma história que ninguém tem tempo de ouvir. É um labirinto onde todos caminham com pressa, mas nenhum sabe exatamente para onde.
O aspecto político do filme se intensifica quando Travis projeta sua própria salvação na figura de Iris (Jodie Foster), a adolescente prostituída. Ele quer a resgatar, mas não por ela — por si. Sua cruzada moral é, na verdade, um ritual de redenção pessoal, uma tentativa desesperada de apagar sua própria sensação de fracasso. A violência final, que muitos já interpretaram como catarse, pode ser lida também como o momento em que Travis conclui sua metamorfose em símbolo — não herói, mas ícone dissonante.
E aqui surge a provocação mais incômoda: a sociedade celebra Travis no final. Ele vira notícia, ganha brilho, é “reconhecido”. A violência que antes era sintoma torna-se, aos olhos da cidade, solução. Scorsese deixa essa ambiguidade aberta como ferida. O espectador é convidado a se perguntar: quantos travis existem hoje? Quantos homens se afogam em suas próprias guerras invisíveis? Quantos são celebrados justamente quando se tornam perigosos?
Taxi Driver continua atual porque nossa era segue produzindo os mesmos homens cansados, isolados, deslocados. Cada metrópole contemporânea é uma nova Nova York de 1976: luminosa, barulhenta, cheia até a borda de solidão. Travis é um fantasma que não descansa. Um aviso silencioso de que a guerra nunca acaba quando os tiros cessam. Ela apenas muda de endereço — do campo de batalha para dentro da cabeça.

E Scorsese sabia disso antes que nós soubéssemos. Talvez ainda não tenhamos entendido completamente.
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