Jorge Lafond: mestria numa vida breve
Há figuras que parecem atravessar o palco da vida como um cometa: fulgurantes, intensas, difíceis de enquadrar em definições razoáveis. Jorge Lafond pertence a essa constelação. Ator, dançarino, comediante e drag queen, ele não apenas interpretou personagens — ele redefiniu a presença cênica com uma corporeidade que os brasileiros, tão afeiçoados a engavetar identidades, não sabiam ainda nomear. Lafond, em sua existência abrupta e generosa, era o próprio espetáculo da contradição: um homem negro, gay, de origem humilde, que ousou ocupar com brilho e deboche os palcos e as telas de um país que adorava rir, mas tinha dificuldade de rir de si.
Sua infância, marcada pela dureza do trabalho precoce e pela vigilância moral, já anunciava a tensão que acompanharia sua trajetória. A consciência de sua homossexualidade veio cedo, mas veio acompanhada do medo — o medo de desapontar a família, o medo de desagradar um mundo que, desde sempre, tentava aprisioná-lo em silêncios. A disciplina com os estudos, quase como uma armadura, foi sua forma de elaboração. E é curioso: muitos artistas negros e LGBTQIA+ no Brasil precisaram adotar esse mecanismo de sobrevivência — o corpo brilhava no palco, mas fora dele, o esforço era imenso.
“Nos últimos meses de vida, já enfrentando complicações cardíacas e renais, Lafond tornou-se a imagem viva do esgotamento de quem sempre teve de performar resistência. Sua morte, aos 50 anos, foi rápida demais. O desaparecimento dos restos mortais anos depois adiciona uma camada quase macabra à sua biografia: nem morto lhe deram descanso.”
Sua formação em balé clássico e dança africana — e o trabalho com Mercedes Baptista — aponta para uma dimensão negligenciada de sua figura pública: Lafond era um artista técnico, refinado, estudado. Não era apenas um comediante talentoso que fazia o público gargalhar; era um corpo altamente treinado para a expressão. O fato de ter passado por boates, cabarés e apresentações noturnas no Rio, abrindo shows, dançando até o amanhecer, revela uma tenacidade que poucos compreenderam. Era o suor antes do brilho.
Com apenas 17 anos, embarcou para a Europa e os Estados Unidos, onde dançou por uma década. Não era um “coadjuvante folclórico” — era um artista brasileiro que circulava no mundo levando consigo a própria dramaturgia corporal. Quando voltou, encontrou a televisão brasileira ainda arrastando preconceitos de todas as ordens. E foi ali que ele fez história.
O palco que dá e tira
Lafond conquistou o Brasil com Vera Verão no humorístico A Praça é Nossa. E aqui reside a ambiguidade central de sua obra: Vera Verão era caricata? Sim. Exagerada? Certamente. Mas era também o primeiro corpo negro, gay, exuberante e assumidamente feminino a ocupar o horário nobre sem pedir desculpas. “Êpa! Bicha, não, meu amor, que eu sou uma quase… mulher.”, não era apenas bordão; era manifesto, era sobrevivência, era política travestida de riso.
Contudo, o país que o aplaudia era o mesmo que o condenava. Militantes de movimentos LGBTQIA+ viam na personagem o reforço de estereótipos. Políticos, padres e apresentadores tentavam enquadrá-lo. Uma cena célebre: retirado do palco minutos antes de uma apresentação religiosa em um programa dominical. Nada mais simbólico — a TV brasileira, sempre pronta para explorar o riso, recuava quando o corpo que fazia rir ameaçava existir para além da piada.
O Brasil tem uma longa tradição de consumir corpos dissidentes enquanto nega sua humanidade.
Nos últimos meses de vida, já enfrentando complicações cardíacas e renais, Lafond tornou-se a imagem viva do esgotamento de quem sempre teve de performar resistência. Sua morte, aos 50 anos, foi rápida demais. O desaparecimento dos restos mortais anos depois adiciona uma camada quase macabra à sua biografia: nem morto lhe deram descanso.
Mas as homenagens, embora tardias, persistem — na avenida, nos palcos, nos documentários, nos Doodles. O carnaval o acolheu com carinho que parte da televisão não teve.
A grande pergunta permanece: o que o Brasil teria feito com Jorge Lafond se ele tivesse vivido mais? Talvez tivesse se tornado um símbolo ainda maior de representatividade estética e política. Talvez tivesse sido canonizado como ícone pop absoluto. Ou talvez tivesse sido apagado, como tantos.
A verdade é que Lafond foi grande demais para o seu tempo — e, justamente por isso, permanece. É lembrado não porque foi perfeito, mas porque foi inevitável. Porque abriu portas, rachou muros, inaugurou vocabulários. Porque fez o país olhar para si e se ver desconfortável — e rir mesmo assim.

Poucos artistas conseguem isso. Lafond conseguiu. E isso basta para chamá-lo de mestre.
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