Match Point: o tênis é um detalhe
Woody Allen sempre foi um cineasta da palavra — verborrágico, neurótico, às vezes genial, às vezes só egocêntrico —, mas em Match Point, lançado em 2005, ele fez algo inesperado: calou-se um pouco. Seu primeiro longa filmado em Londres é menos sobre diálogos afiados do que sobre silêncios que gritam, olhares cínicos e um tênis que roça a fita da rede — com a sorte decidindo mais que o talento. Ou a ética.
A premissa é simples, quase banal: um ex-jogador de tênis irlandês, Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers, com sua beleza inexpressiva de manequim), casa-se com a filha de um milionário britânico, mas mantém um caso com a mulher errada — a atriz americana Nola Rice, interpretada com uma voltagem de 220V por Scarlett Johansson. O cenário é de alta sociedade, mas a alma é rasteira, coberta de desejos miúdos e ambições grandes. Um filme que parece sobre traição, mas que é, sobretudo, sobre privilégio, poder e a conveniência da sorte no mundo dos ricos.
“Scarlett Johansson, à época ainda em ascensão, brilha com um magnetismo triste. Sua Nola é ao mesmo tempo perigosa e vulnerável, bela e descartável. Uma mulher que acredita no amor — e por isso mesmo está condenada à tragédia.”
O tênis, aqui, é só a moldura. Serve para dar um verniz de mérito ao protagonista: vejam, ele tem disciplina, foco, algo próximo do talento. Mas é justamente a sorte — a bolinha que cai do lado certo — que define sua ascensão social e, mais tarde, sua absolvição moral.
Porque Match Point não é sobre redenção, é sobre como a impunidade pode ser elegante quando vestida de Armani.
A estética da amoralidade
Allen já havia flertado com o crime em obras como Crimes and Misdemeanors (1989), mas Match Point é mais gelado, mais britânico — quase um Henry James com sangue nos olhos. Aqui, o crime compensa. E compensa com dividendos.
Chris é um arrivista. Não tem o charme de Gatsby nem a inteligência de Tom Ripley. É um oportunista comum, um homem de expressão opaca que se insinua nos salões e nas camas com a destreza de quem aprendeu o jogo social sem nunca acreditar nele. Sua frieza, disfarçada de hesitação romântica, é o motor do filme. Allen o filma como um entomologista filma um inseto: com distância, precisão e certo fascínio mórbido.
A fotografia opaca e a trilha sonora erudita — repleta de árias de óperas italianas — emprestam uma pompa quase cínica ao enredo. Não há calor em Match Point, mesmo nos momentos mais passionais. O sexo, quando aparece, é urgente, mas não afetuoso. O amor é uma desculpa, e a culpa, um luxo para quem não precisa de álibi.
Scarlett Johansson, à época ainda em ascensão, brilha com um magnetismo triste. Sua Nola é ao mesmo tempo perigosa e vulnerável, bela e descartável. Uma mulher que acredita no amor — e por isso mesmo está condenada à tragédia. Seu destino é previsível, mas Allen o conduz como uma peça de Shakespeare filtrada pela frieza do cinema europeu. Não há catarse, apenas a constatação de que o mundo é feito para que homens como Chris sobrevivam e prosperem.
É um filme sobre classes sociais, mas que se recusa a gritar isso. Prefere sugerir. E talvez isso o torne ainda mais cruel. Allen nos convida a torcer — ou pelo menos a observar sem julgamento — um assassino por conveniência. O crime aqui não é cometido por desespero, mas por cálculo. E a justiça, aquela entidade cega de olhos vendados, simplesmente não aparece.
Há quem veja em Match Point o retrato sombrio da meritocracia: uma ilusão que disfarça a velha e conhecida sorte dos bem-nascidos, dos bem-casados, dos bem-relacionados. Outros enxergam uma crítica ao niilismo contemporâneo, esse desinteresse crescente por certo e errado, desde que o fim justifique a fortuna. Ambas as leituras são válidas. Mas o que talvez mais assuste no filme é que ele foi feito por um homem que, por décadas, escreveu comédia. E que, aqui, decidiu que não havia nada de engraçado no mundo.

No fim, a cena do anel jogado no rio — e que quase se recusa a afundar — é o símbolo perfeito: o acaso reina. O mérito é um ornamento. E o tênis? Um detalhe, uma ilusão de que o jogo é justo.
Nota final:
Passados vinte anos desde seu lançamento, Match Point permanece um dos filmes mais cruéis de Woody Allen. Não por mostrar a maldade — mas por mostrar que ela pode vencer sem esforço, sem castigo e até com um sorriso discreto. No fundo, Match Point é um drama social disfarçado de thriller. Uma lição amarga de como a vida, às vezes, não imita a arte. Mas o capital.
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