O Jardim das Cerejeiras: sempre encenada
Anton Tchekhov talvez não imaginasse, ao escrever O Jardim das Cerejeiras em 1903, que sua peça se tornaria uma espécie de eterno retorno teatral, constantemente revisitada em palcos de todo o mundo. O texto, que marca a despedida simbólica do autor e encerra sua carreira como dramaturgo, é mais que uma história sobre aristocratas russos decadentes perdendo suas propriedades. É um tratado sobre mudança social, falência emocional e a ironia de um tempo que não para ninguém — nem para os nobres, nem para os serviçais que ascendem. Encenar O Jardim das Cerejeiras é, portanto, encenar o próprio embate entre passado e futuro, nostalgia e ruptura.
A peça, frequentemente definida como comédia pelo próprio Tchekhov, ganhou fama como tragédia nos palcos ocidentais. Há uma certa perversidade em chamar de “comédia” um texto que fala de perda, desapego e deslocamento histórico. Mas Tchekhov sempre gostou dessa ironia: a vida não é um melodrama; é uma tragicomédia que se arrasta, cheia de pausas e constrangimentos. Quando a família Ranevskaya perde sua propriedade para o antigo criado, agora burguês, não se trata apenas de um leilão; é a demolição simbólica de um sistema social inteiro. E cada vez que a peça é encenada, o público se vê refletido nesse espelho de mudanças inevitáveis — seja em plena Rússia czarista, em um Brasil pós-boom econômico ou em qualquer outra conjuntura de virada histórica.
“Se há algo de subversivo em O Jardim das Cerejeiras, é justamente a ausência de vilões claros. Não há um antagonista que possa ser culpado por tudo; há apenas pessoas tentando sobreviver a mudanças inevitáveis.”
Talvez seja por isso que O Jardim das Cerejeiras nunca envelhece. Diretores e companhias teatrais adoram “atualizá-lo”: já houve versões que colocaram as cerejeiras no lugar de shoppings centers, condomínios de luxo ou terras indígenas devastadas. Cada época reinventa o cenário, mas o dilema continua intacto — o desconforto diante da perda do privilégio e a incapacidade de entender o próprio tempo. O texto é tão elástico que cabe tanto no palco clássico italiano quanto em instalações minimalistas ou performances experimentais. A ironia é que essa elasticidade não dilui sua potência; pelo contrário, reforça sua universalidade.
A peça também é um campo fértil para atores e atrizes brilharem (ou tropeçarem). Os papéis são ambíguos, carregados de subtexto e contradições, o que exige dos intérpretes uma combinação de contenção e intensidade. Não à toa, O Jardim das Cerejeiras é um ritual de passagem para quem quer ser levado a sério no teatro — quase um trote acadêmico para diretores e elencos. E, justamente por essa aura de “clássico incontornável”, a peça corre o risco de virar um clichê bem-intencionado, em que todos querem demonstrar erudição sem realmente encarar o núcleo corrosivo do texto.
Entre a nostalgia e o marketing teatral
Nos últimos anos, tem havido um certo fetiche pela “atualização” de Tchekhov. Atores vestindo roupas modernas, celulares tocando no palco, trilhas sonoras eletrônicas, cenários que lembram startups do Vale do Silício — tudo para provar que O Jardim das Cerejeiras é contemporâneo. Mas, no fundo, ele já é contemporâneo sem precisar dessas manobras. O risco dessas intervenções é transformar a peça em mera vitrine estética, um desfile de recursos para “viralizar” no Instagram, em vez de mergulhar no desconforto que Tchekhov propõe. Afinal, o dramaturgo não precisava de hashtags para falar de decadência.
Outro ponto curioso é como a crítica teatral trata a peça. Muitos a reverenciam como se fosse uma relíquia intocável, e outros a atacam por ser “datada” ou “burguesa demais”. O mais irônico é que ambos os lados parecem repetir o erro dos personagens: enxergam O Jardim das Cerejeiras a partir do seu próprio ponto cego. Não percebem que o texto não é sobre os ricos ou sobre os pobres, mas sobre o movimento histórico que engole a todos. Ele mostra o que acontece quando não se sabe lidar com o tempo — e isso vale para qualquer ideologia ou classe social.
Se há algo de subversivo em O Jardim das Cerejeiras, é justamente a ausência de vilões claros. Não há um antagonista que possa ser culpado por tudo; há apenas pessoas tentando sobreviver a mudanças inevitáveis. Essa nuance faz da peça um antídoto para narrativas simplistas — e talvez explique seu fascínio contínuo num mundo polarizado, em que tudo precisa ter “culpados” e “heróis” de plantão. Ler ou assistir Tchekhov hoje é um exercício de paciência e complexidade.
Encenar O Jardim das Cerejeiras atualmente, portanto, é encarar não apenas um texto literário, mas um campo de batalha simbólico. Ele testa diretores, atores e plateias: quem ainda aguenta pausas, subtextos e sutilezas? Quem aceita ver seus privilégios questionados sem um desfecho redentor? E, sobretudo, quem tem coragem de assumir que, mais cedo ou mais tarde, todos perderemos nossas “cerejeiras” pessoais? Talvez seja esse o segredo do texto: não oferecer catarse fácil nem moral pronta, mas apenas um cortejo silencioso em direção ao inevitável.

No fim, O Jardim das Cerejeiras permanece sendo aquilo que Tchekhov queria: uma comédia triste, ou uma tragédia engraçada — tanto faz. Sua força está na contradição e no desconforto. Enquanto houver público disposto a olhar para si no espelho rachado da história, a peça seguirá sendo encenada, revisitada, remixada. E talvez seja melhor assim: um clássico não é aquilo que se lê ou assiste uma vez, mas aquilo que nunca termina de dizer o que tem a dizer.
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