Père-Lachaise, o cemitério das estrelas
Em Paris, há um endereço que combina arte, história e turismo mórbido com a mesma naturalidade com que um café francês serve croissants e arrogância matinal: o cemitério Père-Lachaise. Fundado em 1804 por Napoleão Bonaparte — aquele mesmo que tinha mais títulos que centímetros de altura —, o lugar foi inicialmente malvisto pelos parisienses. Afinal, ninguém queria enterrar parentes num terreno afastado, cercado de árvores e com um nome de padre jesuíta (François de La Chaise, confessor de Luís XIV). Mas bastou uma jogada de marketing funerário para mudar tudo: transferiram para lá os restos de Abelardo e Heloísa, os amantes trágicos mais comentados do século XII. Pronto. As vendas de jazigos decolaram.
Hoje, Père-Lachaise é quase um parque temático da morte — com ingressos gratuitos, mas exigindo disposição para encarar subidas íngremes, calçamento irregular e a sensação de que cada esquina pode esconder um gótico romântico ou um fã bêbado do Jim Morrison. Os turistas chegam munidos de mapas e câmeras, enquanto os locais tratam o espaço com um misto de respeito e resignação, como quem aceita que até a eternidade em Paris tem fila de espera. É o cemitério mais visitado do mundo, atraindo mais de 3,5 milhões de pessoas por ano.
“Não se pode ignorar, porém, que o Père-Lachaise também alimenta uma certa estetização da morte, onde o drama humano se transforma em cenário fotogênico.”
E não é para menos: ali estão sepultadas lendas como Oscar Wilde, Frédéric Chopin, Edith Piaf, Marcel Proust, Maria Callas e o já citado vocalista do The Doors, cujo túmulo virou ponto de peregrinação roqueira. Há quem diga que o Père-Lachaise é a “Hollywood dos mortos” — com menos escândalos sexuais e mais musgo nas paredes. Cada lápide conta uma história, algumas heroicas, outras patéticas, todas inevitavelmente encerradas.
A visita é, ao mesmo tempo, um passeio histórico e um ato de voyeurismo existencial. Caminhar por ali é encarar a impermanência — e, paradoxalmente, constatar que a fama pode, sim, ser eterna (ou pelo menos durar enquanto houver placas turísticas). O túmulo de Oscar Wilde, por exemplo, já foi beijado tantas vezes por fãs que precisou de um vidro protetor, como uma Mona Lisa pós-morte.
Entre o sagrado e o espetáculo
O Père-Lachaise provoca reflexões incômodas sobre a relação entre morte e mercado. A rigor, é um cemitério público, mas também é uma vitrine da Paris cultural, com roteiros guiados e souvenires temáticos. A linha entre a devoção e o turismo se desfaz quando se vê grupos fazendo piquenique na grama ou tirando selfies sorridentes diante de um mausoléu. Há algo de contraditório — e até irônico — em transformar a eternidade em atração de um city tour.
Por outro lado, o lugar também cumpre um papel democrático raro: ali, a nobreza literária descansa ao lado de cidadãos comuns, separados apenas pelo tamanho do jazigo e pela quantidade de visitantes que cada um recebe. O contraste é pedagógico: mostra que, no fim das contas, todos ocupamos o mesmo tipo de espaço — o que varia é se a placa do seu túmulo vai sair no guia turístico ou não.
A arquitetura funerária, com seus anjos esculpidos, colunas quebradas e portas de bronze, também serve como testemunho de épocas e estilos. Ali se encontra de tudo: neogótico, art nouveau, minimalismo moderno e até mausoléus que parecem pequenos prédios de escritórios. É como se a história da arte tivesse decidido se aposentar ali.
Não se pode ignorar, porém, que o Père-Lachaise também alimenta uma certa estetização da morte, onde o drama humano se transforma em cenário fotogênico. Isso não é exclusividade parisiense — basta lembrar do boom turístico em lugares como Auschwitz ou Hiroshima —, mas aqui o contraste é mais agudo, pois, a atmosfera é menos trágica e mais performática. A morte, em Père-Lachaise, parece ter contratado um bom assessor de imagem.
Mesmo assim, visitar o cemitério é uma experiência que vai além do mórbido. É caminhar entre séculos de cultura, de tragédias, de paixões, de vaidades e de memórias preservadas na pedra. É, de certo modo, lembrar que cada nome ali gravado já foi um presente, um incômodo ou uma inspiração para alguém. E que, no fim, talvez seja essa a única imortalidade possível: viver na lembrança alheia, mesmo que por intermédio de um mapa de turismo funerário.

O Père-Lachaise segue como um lembrete de que nem todos os caminhos levam a Roma — alguns levam a Paris, com flores frescas, poesia gravada no mármore e a certeza de que, mesmo no silêncio eterno, algumas vozes continuam a ecoar. Afinal, a morte pode ser inevitável, mas esquecer… ah, isso é opcional.
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