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Madame Satã: contracultura e vida marginal

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Em meio às vielas boêmias da Lapa do início do século XX, entre a fumaça dos cigarros baratos e os batuques das rodas de samba, emergiu uma figura tão singular quanto mitológica: Madame Satã. Nome de guerra do pernambucano João Francisco dos Santos, ele foi mais do que um transformista e malandro: foi símbolo da vida marginal, da contracultura e da luta pela sobrevivência em um Brasil marcado por desigualdades estruturais, racismo institucional e moralismo social.

Nascido em 1900 em Glória do Goitá, no interior de Pernambuco, João Francisco foi um filho da escravidão recém-abolida — negro, pobre e homossexual em um país que mal aprendera a lidar com qualquer um desses traços isoladamente. Aos poucos, o menino órfão se viu forçado a migrar para o Rio de Janeiro, onde cresceria à margem, entre prostíbulos, bares e prisões, moldando ali sua persona indomável. Sua vida, marcada por conflitos com a polícia e múltiplas passagens pelo sistema penal, refletia os dilemas e a brutalidade de um Brasil urbano em formação, ainda governado por elites autoritárias e excluintes.

“Rememorar Madame Satã não é apenas um exercício de nostalgia folclórica. É reconhecer, com honestidade crítica, que a exclusão estrutural, o preconceito de classe e a violência contra corpos dissidentes seguem ativos no Brasil.”

João Francisco nunca se enquadrou. Enquanto o regime republicano buscava um modelo de “cidadão ordeiro” — branco, masculino, trabalhador e hétero — Madame Satã surgia como uma provocação viva a essa moral burguesa. Um artista do improviso, exímio capoeirista e entusiasta do carnaval de rua, ele também se apresentava como transformista em cabarés e casas de espetáculo do submundo carioca. Ali, se fazia respeitar tanto com seus trajes glamorosos quanto com os punhos cerrados — fama que lhe rendeu o apelido inspirado no filme Madame Satan (1930), de Cecil B. DeMille.

Madame Satã desafiou os limites da masculinidade tradicional brasileira ao viver de forma intensa sua identidade sexual, sem jamais se submeter aos estigmas da homofobia — mesmo pagando caro por isso. Foi espancado, perseguido, encarcerado e difamado. Passou mais de 20 anos atrás das grades, condenado por homicídio e enfrentando abusos em presídios conhecidos por sua violência. Ainda assim, não foi derrotado. Sua figura crescia no imaginário popular, ganhando contornos de lenda viva, principalmente entre os mais marginalizados: prostitutas, sambistas, malandros, capoeiras e transformistas que encontravam em sua trajetória uma forma de resistência.

Entre lutas de rua e liberdade performativa

No entanto, é necessário evitar romantizações fáceis. João Francisco também foi um homem complexo, contraditório, inserido em um mundo onde a violência era muitas vezes resposta e escudo. Não cabe enxergá-lo apenas como herói ou mártir, mas como um corpo político que viveu — e sobreviveu — desafiando as normas impostas. Sua existência é uma denúncia concreta do sistema que oprime, criminaliza e silencia identidades dissidentes.

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A cultura oficial, por décadas, ignorou ou tentou apagar a memória de Madame Satã. Foi apenas nas últimas décadas do século XX que sua trajetória começou a ganhar espaço na arte e na historiografia, com peças teatrais, livros e, principalmente, o filme homônimo de 2002, dirigido por Karim Aïnouz, que ajudou a consagrá-lo como ícone da contracultura brasileira. Interpretado magistralmente por Lázaro Ramos, o longa resgata a estética e a violência do mundo em que Madame Satã viveu, contribuindo para consolidar sua memória como um símbolo de insubmissão.

Rememorar Satã não é apenas um exercício de simples nostalgia folclórica (Foto: ibd)
Rememorar Satã não é apenas um exercício de simples nostalgia folclórica (Foto: ibd)

Rememorar Madame Satã não é apenas um exercício de nostalgia folclórica. É reconhecer, com honestidade crítica, que a exclusão estrutural, o preconceito de classe e a violência contra corpos dissidentes seguem ativos no Brasil. Em um país que ainda marginaliza LGBTQIAPN+, negros e periféricos, a história de João Francisco dos Santos segue sendo necessária — não como um mito domesticado, mas como denúncia viva de um país que, muitas vezes, prefere reprimir a lidar com sua própria diversidade.

Que se escute o batuque ecoando da Lapa antiga, onde um transformista negro, vestindo plumas e empunhando capoeira, ousou dizer que existia, mesmo quando o mundo inteiro dizia que não. Madame Satã é passado, sim. Mas também é futuro — se houver coragem para isso.


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