“Merda de Artista”: nada mais humano
A história da arte moderna e contemporânea nunca foi exatamente sobre flores no vaso ou paisagens idílicas. Houve sempre algo de provocação, ironia e desejo de chacoalhar o mundo. Mas em 1961, um jovem italiano chamado Piero Manzoni decidiu levar esse gesto ao paroxismo: enlatou suas próprias fezes e as vendeu como arte. O título não deixava espaço para dúvidas: Merda d’Artista. O que poderia soar como uma piada escatológica de botequim tornou-se, paradoxalmente, um dos ícones mais comentados da arte do século XX.
Cada lata, numerada e acompanhada de certificado, continha — segundo o artista — exatamente 30 gramas daquilo que todos nós produzimos em silêncio. Mas a façanha de Manzoni não era biológica, era conceitual. Ele erguia um espelho cruel para a sociedade de consumo, para os marchands e colecionadores que elevam qualquer objeto à condição de obra-prima desde que assinado por um nome “consagrado”. Sua “merda” era menos sobre dejetos e mais sobre o fetiche do mercado, a transformação de tudo em mercadoria, até mesmo aquilo que, em princípio, ninguém gostaria de comprar.
“Há ainda um detalhe de humor involuntário: ninguém sabe ao certo se as latas contêm realmente fezes. Há quem diga que Manzoni, sempre malicioso, as teria enchido de gesso ou qualquer outra substância banal.”
A polêmica foi instantânea. Críticos torciam o nariz, colecionadores abriam a carteira e o público ria ou se escandalizava. Hoje, algumas dessas latas já foram arrematadas em leilões por valores que fariam corar qualquer banqueiro. O gesto de Manzoni, meio debochado e meio filosófico, parece ter resistido ao tempo com mais vigor do que muito quadro academicista esquecido em salões empoeirados.
É preciso dizer: Manzoni não nasceu para agradar. Sua obra era desconfortável por natureza. Ele zombava da aura sagrada do artista, do mito da genialidade criadora, e jogava luz sobre uma pergunta incômoda: o que, afinal, é arte? Se Duchamp já havia colocado um mictório em pedestais, Manzoni foi mais radical. Não trouxe o objeto pronto, trouxe o próprio corpo e seus resíduos, tornando-os protagonistas de um espetáculo tragicômico que ainda incomoda.
Entre a sátira e a seriedade
“Merda d’Artista” não é só um palavrão enlatado. É um comentário corrosivo sobre o mundo da arte e seu público. Há um quê de sátira medieval, como se Manzoni fosse um bobo da corte apontando a nudez do rei. Mas há também uma seriedade quase acadêmica: ele questionava o estatuto da obra, a lógica de atribuição de valor, o poder do nome sobre a matéria. Se a assinatura de um artista pode transformar uma tela em ouro, por que não também o que sai de suas entranhas?
O mais curioso é que a provocação envelheceu bem — ou mal, dependendo do ponto de vista. Em um tempo em que a arte se confunde cada vez mais com investimento financeiro, as latas de Manzoni parecem ter previsto o futuro. O mercado não só as aceitou como as multiplicou em cifras astronômicas. O que era crítica virou mercadoria; o sarcasmo, objeto de desejo. Nada mais humano, convenhamos.
Há ainda um detalhe de humor involuntário: ninguém sabe ao certo se as latas contêm realmente fezes. Há quem diga que Manzoni, sempre malicioso, as teria enchido de gesso ou qualquer outra substância banal. Isso só amplifica o jogo conceitual — talvez a verdadeira “merda” esteja na cara dos compradores, não dentro da lata.
Em termos históricos, a obra também marca a transição de uma arte preocupada com a estética para uma arte obcecada com a ideia. Sem “Merda d’Artista”, talvez muito da produção conceitual dos anos 1970 em diante perdesse seu alicerce. O escândalo tornou-se método.

E cá estamos, com museus exibindo com orgulho uma lata metálica que já deveria ter se degradado — caso contivesse mesmo o que prometia. O fato de ainda estar ali, intocada e venerada, é um lembrete de que o jogo da arte é menos sobre o conteúdo e mais sobre a aura.
No fundo, Manzoni só deu forma física àquilo que já desconfiávamos: a arte pode ser sublime, mas também pode ser um blefe embalado a vácuo. E talvez essa seja a sua lição mais duradoura.
“Merda d’Artista” não é um insulto ao público. É um retrato do público. É a caricatura de um sistema que transforma até o excremento em tesouro, desde que esteja bem rotulado. E nisso, convenhamos, não há nada de mais humano.
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